FÉRIAS SETEMBRINAS
Acordou com o barulho dos trovões rasgando o infinito e apavorando, na terra entardecida, aos homens de boa vontade. Pulou da cama, procurando as sandálias. O chão estava úmido e pegajoso, mistura de vento corrido da chuva e do cheiro marinho sabendo a sargaços desbancados da areia pelas ondas em preamar. Olhou o relógio: quatro horas da tarde. Havia se recolhido ao chalé às doze e quinze, após uma manhã gostosamente cansativa, com pesca de arrasto e lances de molinete na beira da praia do Siriú, em Garopaba, lugar escolhido por Celeste, sua esposa, com uma antecedência precisa de nove meses: “Pense num parto difícil em Santa Catarina, Céu!” Frase que proferiu um dia após ela haver definido o local onde iriam passar o mês de setembro, pondo as cartas na mesa ao lhe mostrar as reservas, na Pousada do Mirante, as passagens aéreas de ida e volta, e um calhamaço com tudo o que imaginara ser preciso comprar antes de viajarem. Esbravejara, reclamara do alto custo e da inutilidade de aquisição de quase tudo por ela relacionado, mas fora voto inválido. Ela vencera mais uma vez, como em todas as vezes em que pusera em cheque a sua opinião nesses vinte e seis anos de casados.
De sua parte, comprara a rede de arrasto, o molinete, o jogo de anzóis, as linhas,dois lampiões a gás, dois colchonetes, repelentes, uma caixa de pilhas e três calções de banho. Ela, particularmente, fizera uma varredura completa nas lojas de Recife. Duas grandes caixas, por ela identificadas como “produtos de toucador”, ficaram retidas no aeroporto para posterior fiscalização alfandegária. O restante das suas compras escapou do crivo fiscal, despachado por caminhão que somente os alcançou na pousada após dez dias de aflitiva espera. Pois junto à barafunda das compras desnecessárias, estavam as roupas, os sapatos, os objetos de uso pessoal e os aparelhos eletro-eletrônicos necessários às atividades do dia-a-dia.
E ali estava ele, plantado em meio à saleta do chalé, de frente para o mar, olhando o cinza além dos vidros da janela, enquanto os pingos da chuva batucavam a cadência de um samba rasgado e os trovões ribombavam reclamos do vento a zanzar assobios nas beiradas do teto zincado, coberto de palha.
Procurou os cigarros, no bolso da camisa de malha branca, puxou a carteira de Minister e olhou surpreso: somente um cigarro lhe restara da pescaria. E assim mesmo quase cortado ao meio, o papel umedecido e manchado, talvez pela maresia ou pelo suor. Como sempre acontecia quando lhe faltava cigarros, a vontade de fumar se fez mais forte. Aproveitando a divisão do que lhe restara, pôs entre os lábios o pedaço maior, acendeu-o, e ficou a cismar com o tempo chuvoso lá fora, com a fumaça que corria sem rumo pelos quatro cantos da sala, com a ausência demorada de Celeste, com os trovões, que vez em quando assopravam estouros sobre o mar revolto, com o instante triste de ser só em lugar distante e nunca vivido, em invernoso veraneio.
Pegou o celular, que calado estava e calado ficou quando ligou para Céu: “No serve”, foi a resposta escrita. Apelou para o interfone, acessando a portaria do hotel. Um zumbido estridente o fez soltá-lo, enquanto um relâmpago clareava o cinza e descortinava o mar balofo sacudindo espumas sobre as encostas escarpadas que faziam do chalé um mirante privilegiado. Deixou o telefone pendulando no vazio e encostou-se à parede. O que fazer, distante de tudo e de todos, numa tarde de chuva intensa, quando somente o cinza das sombras podia divisar? O que fazer, além de ver e ouvir a chuva? Esperar e torcer pela melhora do tempo, ou fantasiar o espaço à sua volta, azulecendo o horizonte acinzentado e triste?
Voltou ao quarto, tirou o notbook da gaveta do armário, sentou-se em frente à janela, acompanhando, por instantes, a corrida louca dos pingos d’água em ziguezague, depois semelhando rios em cada caixilho e despencando em cascatas a caminho do mar.
Ligado o computador, começou a modificar o real, mexendo com as cores e recriando paisagens de seu agrado imaginativo. Esqueceu a chuva e o rebentar dos trovões, que se fizeram distantes, imergindo no silêncio de ser só e poder, com o amparo das musas, vestir-se de azul.
VESTIDO AZUL
Eram azuis meus sonhos de criança.
Azuis eram meus sonhos de rapaz.
De azul sonhar, adulto, fui capaz.
Depois, descoloriu minha esperança.
Descri do azul e, apenas por vingança,
sonhei com o verde e a sorte que ele traz.
Pensei no verde que encontrasse a paz,
mas a paz, mesmo adulto, não me alcança.
Comecei a descrer, então, do sonho.
O pesadelo em mim se fez medonho,
fez-me rever espaços, norte a sul.
E mesmo sendo para mim tardonho
eu sonho ainda, e cada novo sonho
vou colorindo num vestido azul.
Tornou a ouvir mais forte a chuva e o batido insistente de alguém na porta do chalé. Pensou no retorno de Vale apressou-se em abri-la. Um vento frio e respingão invadiu a saleta, juntamente com um jovem, encapuzado dos pés à cabeça, deixando-se ver apenas nos olhos de espanto, nas bochechas rubras e nos lábios trementes:
- P...perdão. É da portaria. O senhor ligou há pouco, mas o sistema foi afetado por uma descarga elétrica e ficamos sem condições de lhe dar um retorno imediato. Já estamos providenciando....
- Tudo bem, tudo bem! Eu tentei ligar para saber notícias de minha esposa, dona Celeste, que foi no carro do hotel para Garopaba, juntamente com outros hóspedes – o chão pegajoso e escorregadio causava comichão em seus pés descalços. Esfregou um no outro - Vocês têm notícias deles?
- Temos, senhor. Estão todos bem, esperando apenas que a chuva diminua um pouco. Como a nossa pousada fica no alto, a comunicação por celular está normal. Inclusive comunicamos a dona Celeste que o senhor já havia acordado e tentara contato pelo interfone. E foi ela que me mandou saber do que o senhor está precisando.
- Por enquanto, de cigarro e de silêncio – olhou para o crachá que pendia sobre a capa do moço, pingando chuva – seu Gilberto. Qual dos dois você pode me adiantar?
- Eu tenho os dois, senhor, além da notícia de melhoria do tempo, prevista para as próximas horas – respondeu, sorridente, o moço da portaria enquanto abria o fecho da capa e retirava da camisa uma carteira de Minister, quase cheia, passando-a às suas mãos – Quanto ao cigarro, não se preocupe. Há o suficiente para atendê-lo quando o senhor precisar. Basta – e repôs o interfone no encaixe da parede – retirá-lo do gancho. Em dois minutos, no máximo, o senhor estará sendo atendido. E quanto ao silêncio, é só fechar a porta depois da minha saída, senhor.
Agradeceu pelo atendimento, recompensando-o satisfatoriamente, fechou a porta e voltou ao convívio das musas no quarto quase às escuras. Acendeu a lâmpada e passou uma vista d’olhos pelo que podia distinguir através da chuva. Aqui e ali, luzes tremeluzentes ofertando sinais de vida. Dava até para contar a quantidade de terraços acesos, doze, dando ares de barcos desgarrados, com os fifós bruxuleantes á procura de abrigo. A noite chegara apressada e a se esconder nas sombras com medo da chuva. Voltou a escrever os versos pensados:
NOITE DE SOMBRAS
Não tenho aonde ir, nem sei por onde.
As ruas que me lembro estão dormindo.
Já não sei mais quem vai, quem está vindo
pela praia que lembro e a noite esconde.
Por mais que eu tente ir, por mais que sonde
em passos de passado alguém surgindo,
a escuridão, meus passos perseguindo,
descompassa algum passo que me ronde.
Sou refém de uma noite que consiste
em me ser solidão. Mais nada existe
além da noite escura como breu.
Somente a minha sombra inda me assiste.
A minha sombra de aparência triste
que insiste em ser mais triste do que eu.
Acendeu um cigarro. Tragou forte e fundo, sentindo os efeitos da nicotina relaxando a mente e lhe despertando o estro, mesmo sabendo-a venenosa e responsável pela tosse intermitente que o acordava no meio da noite, sentindo falta de ar e temendo a morte por asfixia. Com a boca meio aberta foi espiralando a fumaça, formando auréolas azuladas que sumiam pelas frestas das palhas. Pensou em escrever uma carta. Para quem? Para Céu não tinha graça. As falas de todas as horas de todos os dias eram bastante... Pensou em Débora, amor antigo. Ainda tinha gravado o seu e-mail no computador... Por que não?
Decidiu-se:
Siriú, em noite chuvosa.
Perdoa, mas foi o vento que me veio falar de você ainda agora. A fazer alarde, pelas brechas das palhas de sapê, do louro de seus cabelos, do róseo da sua pele, do rubro da sua boca, do canto rouxinoleado da sua voz e das formas estonteantes de seu corpo. Foi o vento que me trouxe essas lembranças, cochichando saudades e me fazendo conceber a sua imagem e vesti-la de azul na vidraça vazia da janela de meu quarto. Foi o vento que me fez recordar da sua frase de adeus: “O amor é como a chuva. Se cai forte, passa ligeiro”. E foi o vento ainda que me instigou a lhe dizer que eu continuo sendo amor e sendo poesia, apesar do seu adeus e do pesar da chuva que cai lá fora; que eu continuo com você presa ao pensamento, apesar das distâncias e do tempo de ser sol, de ser lua, de ser escuridão, de ser chuva, de ser mar, de ser céu, de ser terra em plena solitude, a me inspirar saudades nesses versos que lhe faço:
AMOR E CHUVA
Vamos amar apaixonadamente
com tudo o que há de puro no pecado,
sem medo do futuro e do passado,
amar e ser amado, simplesmente.
Vamos amar animalescamente,
em festim fetichista, tresloucado,
estumando estertores de afogado
em convulsos contorces de serpente.
Vamos viver da vida o melodrama
dos nossos corpos nus, por sobre a cama,
em coleios sensuais, quase sem pausa.
E após a fúria, o apagar da chama
pois o amor, como a chuva, vira lama
depois do grande bem que ela nos causa.
Do seu passado presente,
P
Consultou o endereço eletrônico, abriu a caixa de mensagem, anexou a carta, e clicou em “enviar”, deletando-a em seguida, temente das pesquisas enciumadas de Céu. Várias vezes flagrou-a varrendo os seus arquivos. Ela se saía com notícias de vírus, ou consulta de novas receitas para o preparo de doces e salgados, beliscando-o e se fazendo coquete:
- Você reclama das minhas pesquisas, mas nunca reclamou da minha comida, paixão!!!
Sorriu da lembrança. Voltou a correr os olhos pelo espaço além da janela, estranhando as luzes brilhantes nos chalés à sua volta. A chuva passara, afinal! Abriu a janela e sentiu, pela primeira vez com alegria, o vento mareiro cheirando a sargaços e ecoando o marulho das ondas em preamar por todo o chalé. Foi até a varanda. O mar, à noite, parecia um ser fantástico e gigantesco num ataque ininterrupto de catalepsia, babando, bramindo e soltando espumas para todo lado. Nenhuma estrela de brilho forte se fazia notada. Algum piscar fugidio aqui e ali, logo apagado pelo vento salobro e festeiro que fazia dançar as sombras tocadas pela lâmpada do terraço, mantida em constante rodopio. Mais uma vez pensou em Débora, o seu corpo moreno desnudo, debruço na areia de praia deserta, a sorrir sedução. E, tomando-a por musa, decantou, de improviso, um soneto às suas lembranças:
TENTEI LEMBRAR...
Tentei lembrar, há pouco, como eras,
recorrendo à saudade em que me abrigo
e ao tempo vário, de cenário antigo,
acenando esperança nas esperas.
Tentei lembrar de ti entre as tigüeras
dos sonhos tristes que inda estão comigo.
Tentei lembrar de ti mas só consigo
perder-me no onirismo das quimeras.
Tentei lembrar de ti por um momento
revolvendo o passado, em pensamento,
o nada sendo início e sendo fim.
Tentei lembrar de ti, baldado intento!
A solidão do mar, a noite, o vento,
em vez de te lembrar, lembram de mim.
Encostou-se à mureta da varanda e tentou nova ligação para Céu. Funcionou!
- Paixão!!!!!! Onde você está? –ouviu barulho de copos e talheres.
- Estou em nosso chalé, Fofinha! - ela adorava quando a chamava de Fofa - Contando estrelas, ouvindo o vento, olhando o mar, contando as horas e esperando você!
- Ah, Paixão! Aqui choveu muito. A água foi tanta que cobriu a ponte e a gente ficou impossibilitada de voltar para o hotel. O moço do posto acabou de avisar que o rio está baixando e dentro de umas duas horas já dá para atravessá-lo. Enquanto isso a gente está num rodízio de massa no...Como é o nome do restaurante, meu filho? Magrelo? Hum...Magela. Viu, paixão, estamos no Magela, comendo massas com vinho tinto. Eu pelo menos já parei – ouviu-lhe o arroto – Dei umas beliscadas e parei. Essa coisa de ficar pensando em você, como está se saindo sozinho numa chuvarada dessa...
Afastou o celular do ouvido o bastante para ouvir apenas o som da voz de Céu. Com certeza ela havia se empanturrado de espaguete à bolonhesa, de pizza e pastelete. E assim sendo somente pararia de falar quando cansasse. Consultou o relógio. Quase sete da noite.
-....o tempo ajudar estamos programando um luau na praia de........ Você vai, não é, paixão!
- Vou sim, fofa.
Voltou ao quarto, acendeu a luz e sentou-se novamente junto à janela, curioso por saber se houvera resposta da carta.
-...de duas horas, paixão. Tempo suficiente para você fazer a barba, tomar um banho...Você já tomou o suco que deixei no frigobar?
- Já, fofinha.
- Pois é. Vista a bermuda, com estampa de flores, e a camisa branca, de gola vermelha, que comprei em Florianópolis. O tênis.....
Desligou o celular. Diria depois que a ligação havia caído. Consultou a pasta de mensagem recebida. Nada, a não ser o aviso eletrônico:
“deboratenet@giant.com.This is an automatically generated Delivery Status Notification.Unable to deliver message to the following recipients, due to being unable to connect successfully to the destination mail server.”
A carta não chegara ao destino. Não sabia o porquê. Talvez a caixa estivesse cheia, talvez ela houvesse mudado o endereço eletrônico. Talvez a houvesse recusado...Não deu importância ao fato. Aproveitou o espaço e no rodapé do aviso escreveu:
EU TE ESQUECI
Enfim, eu constatei que te esqueci!
Já não me ocorre mais qualquer lembrança.
O entreter da saudade não me alcança,
nem versos, para ti, eu escrevi.
Rondei os bares e em nenhum bebi!
Juntei-me aos pares, no prazer da dança,
fui renovando os fios de esperança
sem me ligar às músicas que ouvi.
Reconquistei-me a mim, e bato palma
ao renascer da vida dentro d’alma,
sonhando sonhos em que não te vi.
Não foi feitiço algum. O que me ensalma
e me concede paz que hoje me acalma,
vem da certeza de que eu te esqueci.
Apagou o registro, acendeu outro cigarro, caprichando na primeira tragada e pensou em Céu, que estava para chegar, com seus olhos azuis aparentando paz, com seus cabelos louros e encaracolados aparentando calma, com seu corpo esbelto e esguio, aparentando sossego, com sua voz rouca aparentando serenidade, com seu beijo quente prenunciando o furor dos sentidos, e o prelúdio da consonância perfeita entre o homem e mulher, entre o amor e o desejo.
Desligou o notbook, voltou a guardá-lo na gaveta do armário e disse para si mesmo:
- Vamos ao banho e à bermuda de dona Céu, que a noite promete. Melhor um luau, mesmo sem lua, junto a Céu, do que escrever cartas de amor ao léu.
E nada mais disse, nem lhe foi perguntado.
Odir, de passagem.
Acordou com o barulho dos trovões rasgando o infinito e apavorando, na terra entardecida, aos homens de boa vontade. Pulou da cama, procurando as sandálias. O chão estava úmido e pegajoso, mistura de vento corrido da chuva e do cheiro marinho sabendo a sargaços desbancados da areia pelas ondas em preamar. Olhou o relógio: quatro horas da tarde. Havia se recolhido ao chalé às doze e quinze, após uma manhã gostosamente cansativa, com pesca de arrasto e lances de molinete na beira da praia do Siriú, em Garopaba, lugar escolhido por Celeste, sua esposa, com uma antecedência precisa de nove meses: “Pense num parto difícil em Santa Catarina, Céu!” Frase que proferiu um dia após ela haver definido o local onde iriam passar o mês de setembro, pondo as cartas na mesa ao lhe mostrar as reservas, na Pousada do Mirante, as passagens aéreas de ida e volta, e um calhamaço com tudo o que imaginara ser preciso comprar antes de viajarem. Esbravejara, reclamara do alto custo e da inutilidade de aquisição de quase tudo por ela relacionado, mas fora voto inválido. Ela vencera mais uma vez, como em todas as vezes em que pusera em cheque a sua opinião nesses vinte e seis anos de casados.
De sua parte, comprara a rede de arrasto, o molinete, o jogo de anzóis, as linhas,dois lampiões a gás, dois colchonetes, repelentes, uma caixa de pilhas e três calções de banho. Ela, particularmente, fizera uma varredura completa nas lojas de Recife. Duas grandes caixas, por ela identificadas como “produtos de toucador”, ficaram retidas no aeroporto para posterior fiscalização alfandegária. O restante das suas compras escapou do crivo fiscal, despachado por caminhão que somente os alcançou na pousada após dez dias de aflitiva espera. Pois junto à barafunda das compras desnecessárias, estavam as roupas, os sapatos, os objetos de uso pessoal e os aparelhos eletro-eletrônicos necessários às atividades do dia-a-dia.
E ali estava ele, plantado em meio à saleta do chalé, de frente para o mar, olhando o cinza além dos vidros da janela, enquanto os pingos da chuva batucavam a cadência de um samba rasgado e os trovões ribombavam reclamos do vento a zanzar assobios nas beiradas do teto zincado, coberto de palha.
Procurou os cigarros, no bolso da camisa de malha branca, puxou a carteira de Minister e olhou surpreso: somente um cigarro lhe restara da pescaria. E assim mesmo quase cortado ao meio, o papel umedecido e manchado, talvez pela maresia ou pelo suor. Como sempre acontecia quando lhe faltava cigarros, a vontade de fumar se fez mais forte. Aproveitando a divisão do que lhe restara, pôs entre os lábios o pedaço maior, acendeu-o, e ficou a cismar com o tempo chuvoso lá fora, com a fumaça que corria sem rumo pelos quatro cantos da sala, com a ausência demorada de Celeste, com os trovões, que vez em quando assopravam estouros sobre o mar revolto, com o instante triste de ser só em lugar distante e nunca vivido, em invernoso veraneio.
Pegou o celular, que calado estava e calado ficou quando ligou para Céu: “No serve”, foi a resposta escrita. Apelou para o interfone, acessando a portaria do hotel. Um zumbido estridente o fez soltá-lo, enquanto um relâmpago clareava o cinza e descortinava o mar balofo sacudindo espumas sobre as encostas escarpadas que faziam do chalé um mirante privilegiado. Deixou o telefone pendulando no vazio e encostou-se à parede. O que fazer, distante de tudo e de todos, numa tarde de chuva intensa, quando somente o cinza das sombras podia divisar? O que fazer, além de ver e ouvir a chuva? Esperar e torcer pela melhora do tempo, ou fantasiar o espaço à sua volta, azulecendo o horizonte acinzentado e triste?
Voltou ao quarto, tirou o notbook da gaveta do armário, sentou-se em frente à janela, acompanhando, por instantes, a corrida louca dos pingos d’água em ziguezague, depois semelhando rios em cada caixilho e despencando em cascatas a caminho do mar.
Ligado o computador, começou a modificar o real, mexendo com as cores e recriando paisagens de seu agrado imaginativo. Esqueceu a chuva e o rebentar dos trovões, que se fizeram distantes, imergindo no silêncio de ser só e poder, com o amparo das musas, vestir-se de azul.
VESTIDO AZUL
Eram azuis meus sonhos de criança.
Azuis eram meus sonhos de rapaz.
De azul sonhar, adulto, fui capaz.
Depois, descoloriu minha esperança.
Descri do azul e, apenas por vingança,
sonhei com o verde e a sorte que ele traz.
Pensei no verde que encontrasse a paz,
mas a paz, mesmo adulto, não me alcança.
Comecei a descrer, então, do sonho.
O pesadelo em mim se fez medonho,
fez-me rever espaços, norte a sul.
E mesmo sendo para mim tardonho
eu sonho ainda, e cada novo sonho
vou colorindo num vestido azul.
Tornou a ouvir mais forte a chuva e o batido insistente de alguém na porta do chalé. Pensou no retorno de Vale apressou-se em abri-la. Um vento frio e respingão invadiu a saleta, juntamente com um jovem, encapuzado dos pés à cabeça, deixando-se ver apenas nos olhos de espanto, nas bochechas rubras e nos lábios trementes:
- P...perdão. É da portaria. O senhor ligou há pouco, mas o sistema foi afetado por uma descarga elétrica e ficamos sem condições de lhe dar um retorno imediato. Já estamos providenciando....
- Tudo bem, tudo bem! Eu tentei ligar para saber notícias de minha esposa, dona Celeste, que foi no carro do hotel para Garopaba, juntamente com outros hóspedes – o chão pegajoso e escorregadio causava comichão em seus pés descalços. Esfregou um no outro - Vocês têm notícias deles?
- Temos, senhor. Estão todos bem, esperando apenas que a chuva diminua um pouco. Como a nossa pousada fica no alto, a comunicação por celular está normal. Inclusive comunicamos a dona Celeste que o senhor já havia acordado e tentara contato pelo interfone. E foi ela que me mandou saber do que o senhor está precisando.
- Por enquanto, de cigarro e de silêncio – olhou para o crachá que pendia sobre a capa do moço, pingando chuva – seu Gilberto. Qual dos dois você pode me adiantar?
- Eu tenho os dois, senhor, além da notícia de melhoria do tempo, prevista para as próximas horas – respondeu, sorridente, o moço da portaria enquanto abria o fecho da capa e retirava da camisa uma carteira de Minister, quase cheia, passando-a às suas mãos – Quanto ao cigarro, não se preocupe. Há o suficiente para atendê-lo quando o senhor precisar. Basta – e repôs o interfone no encaixe da parede – retirá-lo do gancho. Em dois minutos, no máximo, o senhor estará sendo atendido. E quanto ao silêncio, é só fechar a porta depois da minha saída, senhor.
Agradeceu pelo atendimento, recompensando-o satisfatoriamente, fechou a porta e voltou ao convívio das musas no quarto quase às escuras. Acendeu a lâmpada e passou uma vista d’olhos pelo que podia distinguir através da chuva. Aqui e ali, luzes tremeluzentes ofertando sinais de vida. Dava até para contar a quantidade de terraços acesos, doze, dando ares de barcos desgarrados, com os fifós bruxuleantes á procura de abrigo. A noite chegara apressada e a se esconder nas sombras com medo da chuva. Voltou a escrever os versos pensados:
NOITE DE SOMBRAS
Não tenho aonde ir, nem sei por onde.
As ruas que me lembro estão dormindo.
Já não sei mais quem vai, quem está vindo
pela praia que lembro e a noite esconde.
Por mais que eu tente ir, por mais que sonde
em passos de passado alguém surgindo,
a escuridão, meus passos perseguindo,
descompassa algum passo que me ronde.
Sou refém de uma noite que consiste
em me ser solidão. Mais nada existe
além da noite escura como breu.
Somente a minha sombra inda me assiste.
A minha sombra de aparência triste
que insiste em ser mais triste do que eu.
Acendeu um cigarro. Tragou forte e fundo, sentindo os efeitos da nicotina relaxando a mente e lhe despertando o estro, mesmo sabendo-a venenosa e responsável pela tosse intermitente que o acordava no meio da noite, sentindo falta de ar e temendo a morte por asfixia. Com a boca meio aberta foi espiralando a fumaça, formando auréolas azuladas que sumiam pelas frestas das palhas. Pensou em escrever uma carta. Para quem? Para Céu não tinha graça. As falas de todas as horas de todos os dias eram bastante... Pensou em Débora, amor antigo. Ainda tinha gravado o seu e-mail no computador... Por que não?
Decidiu-se:
Siriú, em noite chuvosa.
Perdoa, mas foi o vento que me veio falar de você ainda agora. A fazer alarde, pelas brechas das palhas de sapê, do louro de seus cabelos, do róseo da sua pele, do rubro da sua boca, do canto rouxinoleado da sua voz e das formas estonteantes de seu corpo. Foi o vento que me trouxe essas lembranças, cochichando saudades e me fazendo conceber a sua imagem e vesti-la de azul na vidraça vazia da janela de meu quarto. Foi o vento que me fez recordar da sua frase de adeus: “O amor é como a chuva. Se cai forte, passa ligeiro”. E foi o vento ainda que me instigou a lhe dizer que eu continuo sendo amor e sendo poesia, apesar do seu adeus e do pesar da chuva que cai lá fora; que eu continuo com você presa ao pensamento, apesar das distâncias e do tempo de ser sol, de ser lua, de ser escuridão, de ser chuva, de ser mar, de ser céu, de ser terra em plena solitude, a me inspirar saudades nesses versos que lhe faço:
AMOR E CHUVA
Vamos amar apaixonadamente
com tudo o que há de puro no pecado,
sem medo do futuro e do passado,
amar e ser amado, simplesmente.
Vamos amar animalescamente,
em festim fetichista, tresloucado,
estumando estertores de afogado
em convulsos contorces de serpente.
Vamos viver da vida o melodrama
dos nossos corpos nus, por sobre a cama,
em coleios sensuais, quase sem pausa.
E após a fúria, o apagar da chama
pois o amor, como a chuva, vira lama
depois do grande bem que ela nos causa.
Do seu passado presente,
P
Consultou o endereço eletrônico, abriu a caixa de mensagem, anexou a carta, e clicou em “enviar”, deletando-a em seguida, temente das pesquisas enciumadas de Céu. Várias vezes flagrou-a varrendo os seus arquivos. Ela se saía com notícias de vírus, ou consulta de novas receitas para o preparo de doces e salgados, beliscando-o e se fazendo coquete:
- Você reclama das minhas pesquisas, mas nunca reclamou da minha comida, paixão!!!
Sorriu da lembrança. Voltou a correr os olhos pelo espaço além da janela, estranhando as luzes brilhantes nos chalés à sua volta. A chuva passara, afinal! Abriu a janela e sentiu, pela primeira vez com alegria, o vento mareiro cheirando a sargaços e ecoando o marulho das ondas em preamar por todo o chalé. Foi até a varanda. O mar, à noite, parecia um ser fantástico e gigantesco num ataque ininterrupto de catalepsia, babando, bramindo e soltando espumas para todo lado. Nenhuma estrela de brilho forte se fazia notada. Algum piscar fugidio aqui e ali, logo apagado pelo vento salobro e festeiro que fazia dançar as sombras tocadas pela lâmpada do terraço, mantida em constante rodopio. Mais uma vez pensou em Débora, o seu corpo moreno desnudo, debruço na areia de praia deserta, a sorrir sedução. E, tomando-a por musa, decantou, de improviso, um soneto às suas lembranças:
TENTEI LEMBRAR...
Tentei lembrar, há pouco, como eras,
recorrendo à saudade em que me abrigo
e ao tempo vário, de cenário antigo,
acenando esperança nas esperas.
Tentei lembrar de ti entre as tigüeras
dos sonhos tristes que inda estão comigo.
Tentei lembrar de ti mas só consigo
perder-me no onirismo das quimeras.
Tentei lembrar de ti por um momento
revolvendo o passado, em pensamento,
o nada sendo início e sendo fim.
Tentei lembrar de ti, baldado intento!
A solidão do mar, a noite, o vento,
em vez de te lembrar, lembram de mim.
Encostou-se à mureta da varanda e tentou nova ligação para Céu. Funcionou!
- Paixão!!!!!! Onde você está? –ouviu barulho de copos e talheres.
- Estou em nosso chalé, Fofinha! - ela adorava quando a chamava de Fofa - Contando estrelas, ouvindo o vento, olhando o mar, contando as horas e esperando você!
- Ah, Paixão! Aqui choveu muito. A água foi tanta que cobriu a ponte e a gente ficou impossibilitada de voltar para o hotel. O moço do posto acabou de avisar que o rio está baixando e dentro de umas duas horas já dá para atravessá-lo. Enquanto isso a gente está num rodízio de massa no...Como é o nome do restaurante, meu filho? Magrelo? Hum...Magela. Viu, paixão, estamos no Magela, comendo massas com vinho tinto. Eu pelo menos já parei – ouviu-lhe o arroto – Dei umas beliscadas e parei. Essa coisa de ficar pensando em você, como está se saindo sozinho numa chuvarada dessa...
Afastou o celular do ouvido o bastante para ouvir apenas o som da voz de Céu. Com certeza ela havia se empanturrado de espaguete à bolonhesa, de pizza e pastelete. E assim sendo somente pararia de falar quando cansasse. Consultou o relógio. Quase sete da noite.
-....o tempo ajudar estamos programando um luau na praia de........ Você vai, não é, paixão!
- Vou sim, fofa.
Voltou ao quarto, acendeu a luz e sentou-se novamente junto à janela, curioso por saber se houvera resposta da carta.
-...de duas horas, paixão. Tempo suficiente para você fazer a barba, tomar um banho...Você já tomou o suco que deixei no frigobar?
- Já, fofinha.
- Pois é. Vista a bermuda, com estampa de flores, e a camisa branca, de gola vermelha, que comprei em Florianópolis. O tênis.....
Desligou o celular. Diria depois que a ligação havia caído. Consultou a pasta de mensagem recebida. Nada, a não ser o aviso eletrônico:
“deboratenet@giant.com.This is an automatically generated Delivery Status Notification.Unable to deliver message to the following recipients, due to being unable to connect successfully to the destination mail server.”
A carta não chegara ao destino. Não sabia o porquê. Talvez a caixa estivesse cheia, talvez ela houvesse mudado o endereço eletrônico. Talvez a houvesse recusado...Não deu importância ao fato. Aproveitou o espaço e no rodapé do aviso escreveu:
EU TE ESQUECI
Enfim, eu constatei que te esqueci!
Já não me ocorre mais qualquer lembrança.
O entreter da saudade não me alcança,
nem versos, para ti, eu escrevi.
Rondei os bares e em nenhum bebi!
Juntei-me aos pares, no prazer da dança,
fui renovando os fios de esperança
sem me ligar às músicas que ouvi.
Reconquistei-me a mim, e bato palma
ao renascer da vida dentro d’alma,
sonhando sonhos em que não te vi.
Não foi feitiço algum. O que me ensalma
e me concede paz que hoje me acalma,
vem da certeza de que eu te esqueci.
Apagou o registro, acendeu outro cigarro, caprichando na primeira tragada e pensou em Céu, que estava para chegar, com seus olhos azuis aparentando paz, com seus cabelos louros e encaracolados aparentando calma, com seu corpo esbelto e esguio, aparentando sossego, com sua voz rouca aparentando serenidade, com seu beijo quente prenunciando o furor dos sentidos, e o prelúdio da consonância perfeita entre o homem e mulher, entre o amor e o desejo.
Desligou o notbook, voltou a guardá-lo na gaveta do armário e disse para si mesmo:
- Vamos ao banho e à bermuda de dona Céu, que a noite promete. Melhor um luau, mesmo sem lua, junto a Céu, do que escrever cartas de amor ao léu.
E nada mais disse, nem lhe foi perguntado.
Odir, de passagem.