O ÔNIBUS NOTURNO...
Foi bom embarcar, afinal. Lá fora, começava a sentir-se tenso, com toda aquela escuridão devoradora. Caminhar pelas ruas à noite não é recomendável, mas ficar parado em um ponto de ônibus, sozinho, não é muito melhor. De qualquer forma, uma vez dentro do ônibus, o rapaz pensou estar mais seguro, e aproveitou o intervalo de tempo em que retirava o dinheiro da carteira, sem pressa, para analisar os passageiros, como sempre fazia. Era a vantagem dos ônibus com embarque posterior: podia olhar para todos de frente, antes de escolher o melhor assento. O silêncio lá dentro era agradável e relaxante, porém com certo tom de melancolia. Veja bem: Melancolia, e não tristeza. Respeitemos as diferenças, até porque as pessoas àquela altura estavam quietas, cansadas do dia estressante, mas nem por isso tristes. Talvez essa serenidade não se desse em uma sexta ou sábado, mas em plena terça-feira o desânimo além de natural era inevitável.
O ônibus estava praticamente vazio. Havia lá dentro apenas cinco pessoas, descontando-se motorista e cobrador: uma mocinha bonita logo ali na frente; um homem de uniforme mais para o fundo; duas mulheres de meia-idade que conversavam em voz baixa nos primeiros lugares; e um senhorzinho de muita idade, alí pelo meio, com boné de frio e olhar triste, parado. Nenhum deles o notou, todos estavam absortos demais, talvez fazendo um compacto mental do dia que se foi, e pensando já no próximo. Na catraca, o cobrador não tinha troco para os dez reais amassados que o rapaz lhe estendeu.
- Tu desce aonde?
- Só lá na Bandeirantes...
- Então daqui a pouco tu me paga.
Passou pela roleta e andou devagar, cuidando para não escolher o banco errado, nem passar batido pelo certo; optou por seu lado preferido, o direito e acomodou-se lá no fundo, satisfazendo suas manias de observador compulsivo: tinha sempre de ter visão total dos lugares onde se encontrava. A obrigação diária de tomar o transporte público criou-lhe todas estas tradições, ou hábitos, os quais já cumpria mecanicamente. Assim, distraído olhou pela janela; a noite estava bela e estrelada, as ruas, desertas, provavelmente graças ao frio que fazia apenas os corajosos ou necessitados saírem de casa.
O assento gelado fez o rapaz arrepiar-se e encolher-se todo, torcendo para que o equilíbrio térmico entre seu corpo e o banco ocorresse logo, e a sensação de frio desaparecesse, uma vez que seu percurso era longo. E solitário; as únicas companhias eram, assim como ocorria com os outros passageiros, as memórias do dia desgastante; a Faculdade, por exemplo, que se mostrava cada vez mais difícil, e tornava complicada a conciliação com o trabalho, especialmente diante de um professor que não suportava-o, dando a impressão de estar sempre querendo algo mais dele, em comparação com os outros alunos. Maldito! O rapaz tinha vontade de furar os pneus do carro do "mestre" com um canivete, ou algo do gênero. Riu-se sozinho ao pensar nesta hipótese. Estaria lá para ver, é claro, a cara do homem ao chegar perto do automóvel e perceber que este estava no chão, todo afundado sobre as rodas murchas... Não era seu estilo, naturalmente, fazer tal barbarismo, e por um momento recriminou-se por ser tão "certinho". Não fora essa a expressão usada pela ex-namorada, segundo ela um dos motivos para o término do relacionamento? Disse que ele era certo demais, parado demais... Ah! Que destempero! O problema era dela, ele estava feliz do jeito que estava. Bem, pelo menos era o que dizia em voz alta frequentemente, tentando fazer com que esta ideia entrasse, de fato, em seu coração, e assim o livrasse de vez daquele fardo emocional. Enquanto isto não acontecia, trabalhava, estudava, saía com os amigos, trabalhava ainda mais... Enchia sua cabeça com as mais diversas ocupações, e assim não pensava tanto nela.
Exatamente na hora em que pensava em uma mulher, outra o percebeu: a moça lá da frente olhou para trás instintiva e despreocupadamente, e, ao encontrar os olhos do rapaz, parou. Ficaram se encarando por alguns segundos, mas logo ela retornou a cabeça para frente. Até que o achou bonitinho, embora um tanto quanto desarrumado demais. Faltava um "quê" de estilo e personalidade, um pouco de moda talvez, e aí sim seria um rapaz que chamaria a atenção das mulheres. Não se comparava, naturalmente, ao seu namorado. Este sim tinha firmeza, coragem e ousadia, suas roupas demonstrando tudo isso com perfeição. Não era à toa que várias gurias estavam dando em cima dele, de acordo com a informação de uma amiga, colega de aula do rapaz. O cara sempre foi "disputado" mesmo, mas aquelas vacas podiam, ao menos, respeitar a namorada que ele tem, a qual elas sabiam muito bem da existência! Daria um "chega-pra-lá" em cada uma, se fosse necessário... Faria mesmo, não há dúvidas! Era louca por ele e não o deixaria assim, nas mãos de meia dúzia de piranhas. Além disso, ainda não confiava nele totalmente: quem trai uma vez pode muito bem trair outras tantas...
Tentou afastar os maus pensamentos da cabeça elevando ainda mais o volume do MP4, e trocando a música para algo mais forte, menos depressivo que o som anterior. Deu mais uma olhadela para o banco lá do fundo, do rapaz, mas desta vez não lhe deu atenção. Curioso... Não havia notado um homem logo atrás, quarentão, uniformizado, com a barba bem feita, o cabelo bem penteado e as botas engraxadas, em contraste com a fisionomia acabada, parecendo extremamente cansada. Ele notou-a também, e ambos os olhos encontraram-se, de súbito. A menina, toda desconfiada, tornou a virar para frente, e lá ficou bem quieta. Filhinha de papai! O homem não suportava presenciar estas riquinhas desfilando com seus jeitinhos arrogantes, sempre com "egoístas" a todo volume nos ouvidos. "Egoístas" era como seu pai nomeava os fones de ouvido; ele concordava e achava divertido o apelido, dado graças a suposta arrogância de quem usava-os, os quais não prestavam atenção em mais ninguém, só a si próprio com seu som particular. O homem lembrou-se dos filhos, o oposto daquela menininha arrogante: humildes e discretos, tanto nas roupas como nos modos. Eram pequenos ainda, não davam grande importância à pobreza, fora um ciumezinho vez que outra por algum brinquedo bacana que algum amigo possuísse e eles não. Entretanto, ele sabia que quando avançassem na adolescência, teria de ter os dois olhos abertos para que não caíssem em armadilhas fáceis, existentes às pencas por aí. Temia muito que algo assim acontecesse, que se tornassem viciados ou ladrões, ou parassem de estudar ao perceber o caminho longo que teriam de percorrer, especialmente por serem pobres. Mas não desistiria jamais, naturalmente! Dois empregos não eram o bastante para ter uma vida confortável, ou ao menos digna? Teria três, quatro, não mais dormiria se fosse preciso! Não desistiria de dar um futuro bom à sua gente! Concluiu ser uma péssima hora para a mulher ter engravidado, mas arrependeu-se do pensamento instantaneamente.
Observou as duas mulheres que não paravam de conversar, sentadas lado-a-lado no banco duplo. Pareciam irmãs, tamanhas eram as semelhanças entre elas. Matraqueavam ininterruptamente sobre filhos, maridos, novelas, sempre em tom baixo, sereno, discreto, condizente com a atmosfera do ambiente. Apesar da similaridade física, não aparentavam muita intimidade entre si, como o homem pode perceber pelo diálogo: fora um encontro casual, típico de ônibus. Os olhos dele, despretensiosos, encontraram os de uma das mulheres, os dela protegidos por óculos de lentes grossas. Maravilha... Como se ela já não estivesse incomodada o bastante por ter encontrado aquela chata com quem estava conversando, agora um maluco tarado estava a observá-la. Não via a hora de descer do ônibus, e chegar em casa finalmente, para alimentar seus amigos e companheiros de toda a vida, os gatos. Tinha em sua casa uma verdadeira coleção deles: eram claros, escuros, cinzentos, malhados, tranquilos, agitados, dorminhocos, bagunceiros... Com eles, não eram necessárias conversas falsas, como a que estava tendo. Seus animais eram muito verdadeiros, e não aceitavam carinhos mentirosos, ou amizades fingidas; se eles não gostassem de alguém, simplesmente ignoravam-o, sem jogos sociais estúpidos. Pensou na tarde de crochê com o grupo da igreja, que havia sido agradabilíssima, embora desgastante. Sentia-se envelhecida e triste por estes dias, e a companhia das idosas não contribuía muito quando sentia-se assim. Eram magníficas, e gostava muito de todas, mas não era tão velha quanto elas, e as vezes sentia falta de um pouco de agitação em sua monótona vida de solteirona. Bobagem! Logo, logo entraria na velhice e poderia, enfim, sentir-se encaixada em algum lugar o qual realmente condissesse com sua idade. Encarou novamente a "amiga", que falava sem parar, e reforçou em seu pensamento o quanto ela era chata. Por que precisava falar tanto no marido e nos filhos? Queria causar-lhe inveja? Aquela perdia tempo, pois já não sentia solidão: se não era feliz, ao menos estava bem. Olharam-se. A mulher que falava era mais idosa, talvez um pouco desgastada pela vida difícil que sempre levara, cuidando de cinco filhos homens, mais o marido. Tentava agora fazer a outra enxergar o quanto a solidão dela era patética. A maluca vivia rodeada de gatos, imagine! Se não é comportamento digno de uma mulher perturbada? E assim seguiu tagarelando muito sobre a grande família e todas as coisas positivas que esta lhe proporcionava, na tentativa de influenciar a outra. Sabia que seu discurso surtia efeito: a ouvinte estava muito quieta, introspectiva, certamente assimilando a depressão de sua vida solitária. Já ela própria sabia ter também os seus problemas, mas as incomodações que os filhos lhe davam eram comuns de qualquer mulher normal, que vive com gente, e não com felinos...
A mulher parou de falar para olhar para trás, incomodada com um barulho de batidas secas e insistentes que ouvia há muito. Descobriu o causador de tal ruído. Era um velho de boné, que mantinha a cabeça escorada no vidro, batendo nele com a fonte sob o ritmo de movimentos do ônibus. Estava com aspecto mórbido, os olhos vidrados em ponto nenhum, o rosto amarelado, duro, sisudo, o corpo mole, sacudindo com o veículo. A mulher mais uma vez tentou buscar os olhos do homem com os seus, mas nada encontrou. Ignorou-o, então, e seguiu contando sobre os seus maravilhosos e perfeitos herdeiros...
Conforme o fim da linha ia se aproximando os passageiros iam descendo para suas casas, voltando às suas vidas, encarando mais alguns metros em meio à escuridão sombria e silenciosa, enquanto o ônibus seguia, arrastando-se. No final da rota os funcionários do coletivo estavam felizes por também eles poderem descansar e voltar para seus lares. E o veículo recolheu-se, no fim de mais uma jornada, à grande garagem, juntando-se a outros tantos que já haviam também cumprido seu duro batente. Motorista e cobrador desembarcaram bocejando, desejando o café mais quente que houvesse à disposição deles na cantina da empresa. Porém o que nem eles, nem ninguém mais percebeu, foi que um passageiro não desembarcara: o velho seguia lá dentro, em meio aos assentos vazios, com a cabeça ainda escorada no vidro, os olhos ainda perdidos, os braços ainda cruzados e o corpo, enfim, vazio...
Só no interior da cantina o cobrador veio a perceber que havia algo de muito errado... Deu-se um tapa na testa quando lembrou, recriminando-se por ser tão distraído e despreocupado com as outra pessoas. Avisou, perplexo, ao motorista:
- O guri que desceu na Bandeirantes não me pagou!!!
E seguiu seu café.