A DIARISTA

Folhas secas, frio e sono. Tudo fica escuro, o corpo duro, o coração sem dono. Olho pela janela e quem vejo? É ela! A Diarista – Cinderela, que todo dia cumpre a rotina, de se dirigir ao trabalho para quebrar o galho de sua família falida, que tornou a garota sofrida em uma espécie de amuleto, capaz de suportar todos os ungüentos e ignoram seus lamentos.

Essa moça não é mais criança, mas não vai às festas e nunca dança. Não a vejo sorrindo, tampouco cantarolando... Imagino-a diferente, em um cenário lindo e seus cabelos arrumando. Seu corpo esguio adornado por um belo vestido bordado e buscando na vida algum sentido. Vejo um jovem forte que possa livrá-la da triste sorte e a conduza a um castelo, que com ela sele um elo de amor e bem-venturança, que a faça esquecer a dor e renove sua esperança. Seu semblante, aos poucos, suaviza, ela sente a leve brisa e seus lábios se abrem em um belo sorriso de alvos dentes, que desvenda todo o seu viço e revelam seus sonhos mais ardentes, acaba-se o caso omisso, não mais sente dor; enfim, tornou-se gente e descobriu o amor.

O devaneio cede lugar à realidade, e observo agora a verdade: ela limpa as vidraças e divaga, provavelmente sobre sua desgraça. Seu silêncio é mortal, talvez esteja pensando, enquanto vai esfregando, na ironia de seu destino: manter-se equilibrada, sem perder o tino, para não cair estatelada, na janela onde ora está pendurada. Ela corre um sério risco, se do oitavo andar do prédio despencar; morrer não é o remédio, e não haverá ninguém para livrá-la desse tédio que a vida insiste em lhe proporcionar. Ela finda a tarefa e já não a vejo: talvez agora, enquanto reprima seu desejo, esteja das roupas de seu patrão a cuidar; lavar, passar, limpar, cozinhar. Seus dias passando assim, seu turno se aproxima do fim e logo se aproxima a hora em que ela poderá descansar.

Nem sei o seu nome, ou sua condição. Não entendo se o que penso a seu respeito são devaneios, tampouco sei do que lhe passa ao coração. Até onde a vista permite, vejo-a partir com o olhar perdido, até arriscaria dizer que triste. Talvez, buscando nisso tudo algum sentido, mas de sua condição não faço nenhum chiste, mas se alguma justiça no mundo existe, arrisco uma premonição: sem fada ou varinha de condão, que um dia o castigo se converta em oportunidade e desejo a ela que encontre de verdade, algo que possa transformar seu caminho e torná-la mais forte, podendo, então, mudar seu destino e sua sorte.

*** Publicado em Contos de Outono - Edição Especial 2009 - CBJE

Patrícia Rech
Enviado por Patrícia Rech em 26/04/2009
Código do texto: T1561845
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