A galeria do amor eterno
Meu sonho de criança era entrar na peça em que meu avô guardava seus quadros. Ele pintava desde guri, contou-me uma tia avó, e detestava que alguém palpitasse sobre suas telas. Então, quando ficou maiorzinho, construiu ele mesmo uma peça grande na casa, escondeu suas artes por lá e, quando se sentia muito angustiado, trancava-se no lugar e pintava feito louco.
Acabou que por circunstancias da vida, ele nunca abandonou aquela casa. Os irmãos foram embora, os pais dele – meus bisavós – morreram e meu avô por lá ficou, soberano. Algum tempo de solidão e ele não suportou. Casou com minha avó e viveram felizes por muitos anos. Só que ele nunca abriu a peça para que ela entrasse e admirasse suas pinturas. Isto gerou alguma briga no início. Quando ela viu que aquilo era uma briga perdida, parou de discutir com o marido e passou a somente a cuidar dos filhos. Vovó sabia que alguma coisa havia acontecido quando o esposo se trancava na peça – que ele galantemente chamava de galeria – e lá ficava por horas a fio, com suas tintas, aquarelas e telas. Os netos nasceram, cresceram, acostumados com a loucura do vovô. Mas minha curiosidade em entrar naquela galeria me enchia de urticária. O que aquele velho louco escondia lá dentro?
Nem mesmo quando ele ficou doente deixou-nos entrar, nem que fosse para limpar. Alquebrado, fraco e trêmulo, ele pegava a chave que trazia pendurada no pescoço e fazia ele mesmo a limpeza. Minha avó se apavorava, pois temia que um dia ele passasse mal e morresse trancado dentro da galeria, no meio de sabe-se lá o quê.
Mas chegou o dia que ele ficou tão fraquinho que não pôde mais se levantar da cama. A chave permaneceu pendurada no pescoço, as mãos em garra segurando-a, com medo que alguém a arrancasse e invadisse o seu mundo particular. Ninguém fez isto. Os dias passaram, ele piorou e ninguém lembrou de tentar entrar na galeria, que deveria estar cheia de pó.
Acordei um dia com a notícia de que o velhinho havia morrido. Corri para a casa dele. Minha avó já havia tirado a chave do pescoço do marido e, entre lágrimas, passou-me, secretamente, dizendo:
- Vá até a galeria e descubra os segredos que este velho escondeu de mim por toda a sua vida.
Disfarcei e fui, trêmula de emoção. Minhas pernas bambas me levaram até a porta e custei a achar o buraco da fechadura. Depois de três voltas, a porta se abriu. Acendi o interruptor. Uma luz fluorescente iluminou o ambiente e todas as telas estavam cobertas por panos brancos.
Uma a uma, descobri-a todas. Havia tantas telas, que algumas estavam encostadas à parede ou acomodadas em um grande armário, sempre cobertas. Mas o modelo era o mesmo. Uma linda mulher, de olhos azuis, cabelos vermelhos, diminuía a distância enorme entre o passado do meu avô e o presente que eu vivia. Quem seria ela? Que mulher era aquela que meu avô amara desesperadamente e que pintara por toda a sua vida? Sempre jovem, algumas vezes rindo, outras vezes séria. Por todo aquele tempo, a mulher misteriosa do quadro jamais envelhecera. E era tão linda que chegava a doer. Senti um movimento no ar ao meu redor e imaginei que fosse ela, a ruiva. Mas era minha avó que parava ao meu lado, enlevada.
Imaginei o que ela diria, ao saber que meu avô amara outra durante tanto tempo, até sua morte. Para minha surpresa, vovó exclamou:
- Oh, veja o que ele fez! Como foi capaz de me deixar tão bonita e nunca me revelar isto?
Olhei de novo para os quadros. Como não pude reconhecer que aqueles olhos azuis das telas eram da minha avó? E eu nem sabia que ela havia sido ruiva! A impressão que eu tinha é que ela já havia nascido de cabelos brancos. Lágrimas escorriam pelos seus olhos. Não sabia se era tristeza, saudade, surpresa. Tudo junto misturado talvez. Não sei quanto tempo minha avó percorreu a galeria, olhando os retratos, em silêncio, cada quadro uma descoberta. Depois, após a ultima tela, ela pegou a chave que eu ainda segurava e disse:
- Voltei ao passado e estou me sentindo tão jovem e bonita como jamais fui, graças a ele, graças aquele homem que amei e que partiu hoje. Venha, vou trancar a galeria e vamos embora.
Meu avô foi enterrado e ela nunca me disse se voltou à galeria novamente. Mas quando ela também se foi, eu voltei lá para ver como estava. Encontrei a velha cadeira de balanço de vovó, encostada em uma parede. Deveria ser lá que ela passava suas intermináveis horas de solidão, observando seus quadros, quem sabe conversando com meu avô, em retornos ao passado, diminuindo distâncias entre dois velhos amores.