O "Malandro"...

Me lembro bem o quanto os passeios com minha mãe eram aguardados com ansiedade, àquela época. De onde surgiu tal fixação, acho que é impossível dizer, ainda mais se tratando da cabeça de um garotinho de sete anos cheio de idéias, imaginação e vontade de descobrir o mundo todo de uma só vez. Assim, ficar em casa parecia-me chato sabendo da existência daquele movimento, barulho e agitação que somente no centro da cidade eu poderia encontrar; por conseqüência, as raras ocasiões em que podia visitá-lo eram aguardadas com ansiedade única. É bem verdade que toda essa minha ansiedade e expectativa deveriam ser mantidas sob controle, uma vez que minha mãe odiava quando ficava a perturbá-la com os pedidos incessantes para me levar ao “Calçadão, ou aos camelôs, às lojas, no cinema, teatro, qualquer lugar, por favor, por favor, por favor...” Comecei a controlar toda essa persistência a partir de uma tarde, na qual exigi tanto para que fossemos perambular pela cidade, que minha velha prometeu, com seu típico olhar firme de quem realmente estava prometendo: “Se tu me pedir mais uma vez eu vou te bater tanto que tu não vai sentar por uma semana!!!”. Quando ela me comunicava alguma coisa utilizando aquele “suave” tom de voz, eu, garoto esperto, já sabia que o negócio era sério, e seria bom respeitar.

Respeitava, mas no peito o coraçãozinho de guri arteiro batia acelerado quando a ouvia dizer pro pai que teria de ir ao centro, pagar uma conta ou fazer algumas outras. Discretamente eu chegava pra volta dela com olhar suplicante, e ficava brincando ali por perto, ou melhor, fingindo brincar, porque eram só os ouvidos trabalhando, aguçados, esperando o convite, ansioso: “Filho, vamos passear no centro?”. Pergunta retórica, não precisava de resposta, já eu ia correndo trocar de roupa, feliz da vida. Pelo contrário, quando decidia sair sem me levar, sabia bem que deveria dar boas explicações, ou então uma “sombra” ficaria no seu encalço até a hora de sair. “Filho, hoje eu não posso te levar, vou ficar um tempão na fila do banco”. Eu, é claro, não queria saber de desculpas, e às vezes perturbava tanto que somente um “pára-te-quieto” resolvia. Claro que a mãe sempre se arrependia, e quando voltava já tinha embaixo do braço um presentinho, uma chantagem que deixaria qualquer criança radiante; qualquer criança, menos eu: “Preferia ter ido contigo...” dizia, com o regalo pendendo displicente nas mãos. A mãe, sem entender o motivo de tal fixação, cedia cansada, afinal: “Ta bem, da próxima tu vai.” Promessa para ela era dever, e na próxima me levava mesmo, não importando o que fosse fazer, nem o quanto eu poderia atrapalhar.

Em um desses passeios, durante esta época, conheci um rapaz um tanto estranho, mas que mudou a minha vida para sempre, e que a minha memória, um pouco distorcida pela percepção de um garotinho impressionável, ainda relembra em dias ocasionais...

A luz do sol já estava a uma altura baixa, e seus raios restantes iam de encontro aos olhos despreparados, enquanto a brisa agradável tornava a rua um destino quase irresistível. Eu estava animado com a possibilidade de ficar fora até a noite, e esperava ansioso que os postes começassem a acender suas luzes amareladas. O Calçadão, sombreado pelos prédios ao seu redor, estava lotado, na sua maioria por consumidores que transitavam tranqüilos, uma vez que o Natal se aproximava e os mais precavidos, desde cedo farejavam em busca de preços baixos para as compras de fim de ano. Minha mãe era um bom exemplo. Não conseguia ver uma loja bem enfeitada sem entrar para analisar os preços ou simplesmente conversar com as atendentes, muito embora raramente ela comprasse alguma coisa. Sendo assim, quando viu na vitrine um par de saias vestidas elegantemente por duas manequins carecas e estáticas, não resistiu e me puxou loja adentro, contando sobre os maravilhosos descontos que sempre haviam ali. Entrei a contragosto, louco para ficar na rua observando os casais namorarem e os adolescentes bagunceiros, dos quais achava muita graça. De tanta vontade ver o que acontecia lá fora, improvisei, e a grande vidraça da loja, que servia para os transeuntes olharem de fora para dentro, serviu para mim de maneira oposta, uma vez que fiquei lá dentro espiando pelo vidro sujo o movimento da rua.

Foi quando percebi, ao longe, o tal rapaz, e ele imediatamente chamou minha atenção.

Veio de lugar nenhum, caminhando com um gingado exibido, jeito de “malandro”, ostentando orgulhoso um par de calças ridiculamente baixas, do qual me lembro ter achado muito engraçada, pois o deixavam praticamente com a bunda aparecendo. Na cabeça, um boné todo atravessado, com a aba reta, fazia sombra na barba por fazer e no cavanhaque mal cultivado, que davam ao rosto um aspecto sujo, desleixado. Sua idade não sei precisar, lembro-me de ter pensado ser mais novo que meu pai, embora aquele não fosse mais guri. Na rua, quem passava o estranhava tanto quanto eu, embora com menos admiração; de maneira diferente, preocupados, alguns se afastavam, outros o encaravam, e seu semblante fechado, sisudo, não contribuía em nada para evitar que aqueles o temessem.

Pelo contrário, eu o achei hilário, com as calças quase caindo e o jeito de caminhar cheio de malevolência, o qual imitei em casa, mais tarde, com grande perfeição. Definitivamente o rapaz se destacava mesmo em meio a uma rua lotada, e eu inocentemente acompanhava com os olhos e um riso no rosto seu “desfile” pelo Calçadão. Foi quando meu momentâneo herói olhou displicentemente para dentro da loja, num movimento rápido de cabeça, e avistou aquele pequenino rosto que o encarava com um sorriso de orelha a orelha, o qual, de tão inocente, achou graça; o rapaz fez uma careta divertida, alegre, e um sinal de positivo meio estranho e cheio de ginga, que naturalmente, retribui feliz da vida. Naquele momento, sem saber, eu, um simples gurizinho sorridente, provoquei uma terrível reação em cadeia. Enquanto ele me cumprimentava, uma senhora de meia-idade cheia de cautela no caminhar, se meteu repentinamente no meio do caminho, toda distraída guardando sua carteira enquanto saía de uma lancheria. O rapaz andando depressa, a senhora andando devagar, ambos desatentos e em rota de colisão... Não preciso dizer que a pancada foi forte, e os dois voaram pelo chão desastrosamente; o rapaz caindo de joelhos, e a senhora deitada, deixando voar longe sua carteira, a qual esparramou papéis, cartões e duas notas de dinheiro.

A cena a princípio foi preocupante, mas depois não posso negar que se tornou cômica. Os adolescentes caíram na gargalhada, principalmente quando o rapaz, tentando se erguer falou, com gíria nas palavras:

- Olha por onde anda, titia!

A senhora fez cara de zanga e retrucou:

- Me ajuda a levantar, ô mal educado!

Tudo aconteceu bem perto de onde eu estava, transformando-me em um espectador privilegiado, tanto que percebi um detalhe curioso: a carteira ficou tempo demais sozinha no chão. Lembrei imediatamente que a mãe sempre me alertava quanto aos cuidados que devia tomar para não ser roubado, e imaginei se aquela senhora não sabia disso, uma vez que deixara a carteira lá, toda atirada. Pus os olhos, curioso, em seu conteúdo, tentei ler os papeizinhos e cartões caídos, e identifiquei o valor das cédulas: uma de cinqüenta reais e a outra de dez, quando...Opa! Um pé descuidado pisou na de valor maior, escondendo-a discretamente, enquanto os pedestres que passavam davam atenção à tentativa do rapaz de erguer a senhora. Levantei os olhos e avistei o dono do tênis que mantinha a nota embaixo da sola: um adolescente magricela, vestido com uma camiseta bonita, bermudas largas e tênis de uma marca famosa. Foi recuando lentamente, arrastando o pé, cauteloso, e me perguntei com inocência se ele não havia visto que pisara exatamente em uma nota de cinqüenta reais, logo no Calçadão, onde há tantos metros quadrados para se pisar. Como quem não quer nada, ele se abaixou rapidamente, simulando de maneira patética que iria amarrar o cordão do tênis, o qual pelo contrário, desamarrou, antes de olhar em volta preocupado, levantar o pé e pegar ligeiro a nota, ocultando-a nas mãos trêmulas. Muito tenso, guardou o dinheiro no bolso, tornou mais uma vez a amarrar o cordão do tênis e levantou-se, percorrendo os olhos nervosos em todas as direções, à procura de alguma testemunha, a qual, para sua surpresa, ele veio a encontrar: mais uma vez o gurizinho detrás da vitrine fora notado, e eu olhei fixamente no fundo dos olhos do adolescente, aguardando com a esperança de criança que este fosse devolver o dinheiro. Ficamos assim, nos encarando por alguns segundos; eu, um guri cheio de pudor e inocência, ele com feições assustadas enquanto parecia digerir a idéia de que fora flagrado e questionando-se sobre o que faria a respeito. Sua reação, a seguir, considero como a primeira vez em minha vida que fiquei totalmente decepcionado com a raça humana, sentimento este que ainda iria repetir-se outras tantas vezes; o adolescente, de súbito, frustrou minhas expectativas de honestidade pondo nos lábios um sorriso quase maquiavélico e o dedo indicador, fazendo um gesto que eu já conhecia: deveria ficar quieto. Afinal, ele deve ter pensado, o que um gurizinho pode fazer? Eu na ocasião não sabia, mas realmente nada que fizesse poderia mudar o trágico roteiro que se anunciava em pleno Calçadão.

Instantes depois, a senhora que caíra, já erguida novamente, recebia das mãos do rapaz que a atropelara a carteira com todos os papéis e cartões, mas com apenas dez, dos sessenta reais que deveriam ali estar. Ela imediatamente protestou:

- Cadê os outros cinqüenta reais que estavam aqui??

- Não tinha mais dinheiro no chão!- Retrucou nervoso o rapaz, sentindo automaticamente que poderia se meter em confusão.

E estava certo. A senhora ficou à beira de um ataque, afirmando que precisava daquele dinheiro, tinha de comprar remédios, era só o que sobrara do mês, que tivesse piedade de uma velha, etc. Implorou, pediu, ordenou e até ofereceu trocar a nota de cinqüenta pela de dez reais, a qual sabia que era menor, mas pelo menos seria dinheiro honesto, ofertado e não furtado. O rapaz, por sua vez, jurava por todos os Santos existentes, e até uns inexistentes, que não pegara dinheiro nenhum, e sequer vira a tal nota. Voltou ao local onde outrora caíra a carteira e procurou intensamente, sem êxito; depois perguntou aos espectadores se alguém vira alguma coisa, e após recusa geral, perguntou novamente se alguém vira que ele próprio não pegara o dinheiro; desta vez, ninguém se pronunciou, não dizendo sim ou não, fato que, diante das circunstâncias, soara quase como condenação popular. A mulher seguia com os impropérios contra o rapaz, que agora já havia perdido todo o estilo e personalidade de outrora, quase entrando em desespero.

Atrás da vitrine da inocência eu não entendia o motivo de tanta apreensão e nervosismo por parte de meu amigo. Não sabia que este já conhecia as regras daquele jogo, que eram poucas, embora rígidas: ele era negro, pobre e estava sendo acusado de roubo. Elementos suficientes para imediatamente torná-lo culpado.

E assim foi, quando o dono da lancheria saiu de seu estabelecimento para averiguar o motivo de tanta confusão, e viu sua fiel cliente à beira das lágrimas. Quando perguntou a esta o porquê, a resposta selou o destino do rapaz:

- Esse guri me roubou...

O “guri”, percebendo que não tinha mais escapatória, saiu correndo desesperado, tentando fugir daquela cilada, mas agora o veredicto já fora aplicado e todos estavam contra ele. Um homem agarrou-lhe pelo capuz do moletom, enquanto o dono da lancheria deu-lhe uma “gravata” e o atirou no chão, já sendo ajudado por outros dois homens que não perderam a oportunidade de dar umas pancadas no bandido, em forma de tapas na cabeça e chutes pelo corpo.

Do outro lado do vidro, aos sete anos de idade, minúsculo ao lado dos gigantes manequins de plástico, fiquei assombrado, horrorizado, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto o rapaz gritava desesperado, já sem ginga nem sorriso fácil:

- EU NÃO FIZ NADA!!!! NÃO FUI EU!!!

Subitamente, dois "brigadianos" surgiram correndo, vindos de não sei onde, com cassetetes em punho, prontos para entrar em ação. Aqueles homens surgiram para mim como os super-heróis dos desenhos que assistia, passando no meio da multidão, gritando aos homens que soltassem o rapaz. Meu coração voltou a bater, afinal os mocinhos haviam chegado e iriam reparar todas as injustiças; tentei conter um sorriso de alívio e felicidade, enquanto as mãos secavam as insistentes lágrimas que teimavam em escorrer por meu rosto avermelhado.

É bem verdade que o conto de fadas durou bem pouco tempo, e hoje penso que se houvesse deixado de assistir a coisa toda naquele momento, talvez minha vida fosse mais esperançosa e inocente nos dias atuais. Isso porque os “homens bons” não acabaram com injustiça nenhuma, pelo contrário, um dos policiais agarrou o rapaz enquanto o outro fazia uma revista completa, de maneira violenta e hostil. Nos bolsos foram encontrados um saquinho com um tipo de erva, a qual no momento não soube do que se tratava, e três notas de dinheiro: Uma de dois reais, uma de dez, e outra, por alguma ironia triste do destino, de cinqüenta reais, a qual a mulher jurou ser a sua, reconhecendo inclusive algumas marcas que lembrava ter.

Naquele momento eu não entendia exatamente a situação, mas sabia que as coisas não iam bem, e me senti apavorado com a maneira injusta como estavam tratando meu amigo. Era um engano, é claro, e bastaria avisá-los disso para que todas as coisas fossem reparadas; assim, devia agir rápido antes que o verdadeiro culpado, o qual já devia estar longe, desaparecesse de vez. Sem mais pensar saí correndo à procura de minha mãe, por entre cabides e manequins, vendedores e clientes, que se espantavam com o choro que corria por meu rosto. Encontrei a mãe saindo de um provador, cheia de roupas dobradas nas mãos, e bastou enxergá-la para começar a contar, quase gritando, um resumo mal feito da história, de maneira atropelada e sem pausas. Naturalmente ela se assustou com meu estado, e pedindo para que repetisse, apenas insisti que me seguisse até a rua, onde explicaria tudo. Lá a situação permanecia igual, e muitos gritos acusadores e pedras voavam para o rapaz que tentava esconder-se atrás dos policiais, já algemado e com um olho roxo. Minha mãe perguntou a um senhor de aparência muito serena o resumo da história, o qual me surpreendeu tanto pela brevidade quanto pelos erros:

- O guri tava chapado e roubou a carteira de uma senhora; uns homens que passavam pegaram ele.

Não pense que aceitei quieto tal absurdo, pelo contrário, gritei, protestei, chorei mais do que falei, enquanto era novamente puxado para dentro da loja por minha mãe, que entendia cada vez menos:

- Filho, eu sei que tu te assustou com o que viu, mas esse tipo de coisa acontece. Tu já ta cansado, então vou pegar as compras e nós vamos embora.

Ainda sobraram alguns gritos e mais choro, que só serviram para irritar a mãe, já também nervosa com a situação, e como conseqüência deu-me um violento beliscão, exigindo-me que ficasse quieto até que voltasse com as compras.

Triste, magoado, com o braço doendo e sem entender mais nada voltei para a vitrine, de onde avistei que a viatura da polícia tinha subido o Calçadão, esperando o agora criminoso. Os homens da lei tiveram dificuldades para fazê-lo passar no meio do conglomerado de pessoas que queriam fazer justiça com as próprias mãos, ameaçando linchar o rapaz, que implorava aos policiais para levá-lo logo, com medo de apanhar dos honestos cidadãos, os quais certamente pensavam estar fazendo a coisa certa, cuidando da segurança pública. Ao entrar na viatura da polícia, o rapaz ouviu aplausos e xingamentos eufóricos, e observou que o gurizinho da vitrine seguia lá, embora agora estivesse com a face triste e arrasada, chorando compulsivamente. Nossos olhos pela segunda vez naquela tarde se encontraram, agora separados por mais um vidro, o do carro da polícia. Tristemente, meu amigo levantou as mãos algemadas e fez seu sinal de “certo” esquisito da mesma maneira que antes, e com as costas da mão interrompeu uma lágrima que quase desceu: alguns homens já conhecem a vida e sabem que apenas os garotinhos recebem consolo ao chorar.

Não seria a última vez que veria aquele rapaz, o qual até hoje intitulo de “meu amigo”, graças ao gesto carinhoso e afável que fez para mim. Alguns meses depois o vi novamente, desta vez sorridente e parecendo muito feliz. Infelizmente. Em um jornal que meu pai estava lendo certa manhã, reconheci a foto, que segundo a legenda fora fornecida pela família e mostrava meu amigo com um sorriso franco no rosto numa festa de aniversário. A matéria estava situada em um canto humilde e discreto da página policial, daqueles que os leitores passam sem sequer perceber. Sobre a foto, uma manchete pequena e triste, para mim, terrível: “Jovem assassinado na prisão”.

Aos sete anos de idade, parei de acreditar na justiça e nos homens.

Hoje entendo que tudo aconteceu graças a um rapaz que quis usar a “malandragem” para tirar vantagem sobre outra pessoa, e acreditou ser possível ganhar um dinheiro fácil sem sofrer nenhum prejuízo em sua vida. Nunca mais revi o “malandro”, mas sei que não conseguiu.

Felipe Bilharva
Enviado por Felipe Bilharva em 21/04/2009
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