ABEDULA – As sementes

* Da série ABEDULA

** Leia também: "Abedula" - "Abedula - A picada" e "Abedula e os impostos"

Kéio era um menino estudioso, tímido , econômico nas palavras mas extremamente observador – cuidava todos os movimentos do entorno – tornando-se um conhecedor de tudo o que girava no micro-cosmos da rua, cujo maior expoente era a Loja de Abedula, transformada em ponto de encontro da cidade.

O “patrício” , como era conhecido pelos moradores da redondeza levava muito jeito com crianças , sempre carinhoso chegava a surpreender presenteando aos miúdos com uma bala de banana , generosidade que flexibilizou em muito a fama de “mão de vaca” que era uma adjetivação muito difundida em relação aos membros da colônia árabe – justiça se faça – muitos deles eram bastante mesquinhos mesmo . Mas não era o caso de Abedula ...

Com aquelas guloseimas e frente à boa dose de carinho , Kéio aos poucos foi se tornando uma visita constante na Loja , onde sentava-se num banquinho de madeira e ficava observando a técnica daquele exímio mercador do oriente, sempre capaz de aumentar o volume de vendas , com saídas do tipo : “ Mas se bái lebar essa camisa, leba também uma gravad(t)a que combina...” Ou , ainda - “Batrício vende drês pelo breço de uma...”

Certa ocasião, Kéio não deixou de notar uma bandeja cheia de sementes de abóbora que estavam secando num muro, vendo no pátio a plantação e uma horta caprichada na capina, um dos prazeres de Abedula que sempre após o encerramento do expediente da Loja dedicava-se a cuidar com muito gosto de suas plantas.

Não contendo sua curiosidade o menino indagou ao árabe : - “o que o senhor vai fazer com essas sementes” ? , ao que Abedula , num momento de inspiração respondeu: - “Batrício esbera secar e engole, debois bega a semente junto com a bosta e blanta abrobeitando já esd(t)ar adubado...”

Kéio chegou em casa e com muito nojo contou a novidade para os pais, recomendando que eles nunca aceitassem comer abóbora ou qualquer doce que viesse a ser elaborado com abóboras na casa de Abedula, o que gerou uma rodada de boas risadas na família, mas com o passar dos tempos o assunto ficou esquecido.

Alguns anos mais tarde, Kéio retornou da faculdade já formado, ostentando orgulhoso o diploma de médico – foram muitos anos dedicados aos estudos e de distância da vizinhança – até que um belo dia resolveu visitar a Loja do velho Abedula . Chegando no estabelecimento foi recebido com festa e emoção pelo árabe que o convidou para sentar-se no muito bem decorado escritório, oferecendo-lhe uma gama variada de bebidas, e para acompanhar a prosa abriu latas com diversas especiarias de sementes orientais – uma delas, contudo, continha sementes secas e salgadas – de abóbora ...

Perplexo com aquilo - viajando ao passado - e lembrando da euforia com que contou o fato aos pais e do nojo que sentira naquele episódio da infância, Kéio não conteve os risos em profusão quase insossa, no que foi interpelado por Abedula : - “ o que foi ...?”

Kéio contou a história toda ao árabe nos mínimos detalhes e os dois acabaram invadindo a noite , bebendo e comendo sementes salgadas de abóbora , enquanto Abedula comentava sobre a cultura culinária oriental e o aproveitamento dos grãos como tira-gosto que remonta a milênios. Foi um momento especial para ambos , ficando para a história o episódio das sementes adubadas de abóbora geradas na fertilidade de uma relação pura de tempos idos ...