Fora dos trilhos
Pedro, sempre que podia, vinha visitar os avós. Gostava da companhia dos velhos, que moravam perto, o que o animava a ir a pé, geralmente no fim da tarde, quando começava a escurecer. Logo que dobrava a esquina, avistava o velho Vicente a balançar na cadeira de vime.
Aproximava-se e fazia um leve carinho nos seus cabelos brancos.
– Como está?
– Vou levando... Essas dores nas pernas não me dão sossego.
Pedro afastava-se um pouco para melhor observar o avô. Percebia, de fato, que o corpo já dava sinais de esgotamento. A saúde precária, contudo, não tirava o gosto por um cigarro de palha, mania desde os tempos de moço. Para acompanhá-lo, o neto tirou do bolso um maço de Hollywood e sentou do lado. Sem vento que atrapalhasse sua trajetória, as fumaças se uniam e se perdiam no céu.
Vicente continuou a se balançar na cadeira, como se o neto não estivesse ali. Seus dias passavam-se assim, silencioso, perscrutando o movimento ao redor. Pedro notava-o cada vez mais calado, mas percebia que sua audição continuava aguda: conseguia distinguir o apito do trem que se aproximava; apito esse com o qual Vicente conviveu por décadas e décadas, e que se tornara tão familiar quanto sua cadeira que, de tão antiga, poderia contar ao neto, se pudesse, a história do velho, desde a mocidade até a altura dos seus quase noventa anos. Narraria suas viagens, a chegada de cada dia e a partida no dia seguinte; seu vislumbre dos descampados, as novidades que colhia num canto aqui, noutro ali e trazia para conhecimento da esposa, Marieta.
– Você não vai acreditar.
Invariavelmente era assim que começava seus relatos. O caso, que parecia assombroso ou espetacular, escandaloso ou vulgar, não passava de uma historieta de cidade pequena, um conhecido cuja presença há muito não via ou um parente que por alguns minutos, aproveitando a parada do trem e sabendo da presença de Vicente, vinha dar um dedo de prosa, nada mais do que isso. Mas Pedro gostava de ouvi-las. Acompanhou, desde criança, a trajetória do avô maquinista. Fez muitas viagens à casa dos primos de Araçatuba em companhia dos pais. Gostava de olhar os campos abarrotados de gado. Mesmo quando desertos, admirava sua imensidão.
Pedro relembrava com o avô os muitos passageiros que por ali passaram, vindos de São Paulo ou de Corumbá, dependendo do destino.
Como sempre, no começo Vicente parecia não ligar, mais ouvindo do que falando, mas aos poucos ia se animando, puxando da memória nome de pessoas, episódios, exercício que mantinha a mente ativa.
– Lembra o que seu pai fazia pra não pagar sua passagem?
– Não muito, era pequeno.
– Quando o cobrador passava, ele te levava pro banheiro.
– E o vendedor de salgadinhos? Dele eu me lembro.
– Que é que tinha ele.
– Saía gritando pelo corredor: “Olha as coxas de minha irmããã!”.
– É verdade, quando as coxinhas de frango não eram as da irmã, eram da mãe.
– E aquele fulano que desceu do trem para fazer sabe-se lá o quê e teve que correr com um cachorro na sua cola pra não ficar pra trás.
E conversa vai, conversa vem, Vicente sem perceber já sorria, e Pedro, satisfeito por conseguir seu intento, já via a hora de ir embora.
Então ajudava o avô a entrar, levando sua cadeira e segurando-o por um dos braços.
Mas, por mais que o neto animasse seus dias, quando Vicente se via sozinho, só sabia reclamar, e acabava xingando a mulher, como se ela fosse a culpada.
E o que era uma vida de lamentações e queixumes, só veio a se agravar com a chegada da aposentadoria. O irrequieto Vicente não suportaria ficar em casa, sem ter o que fazer.
Entrou num processo desolador de autocomiseração, como se de repente se desse conta de que estava velho e imprestável. Por mais que o consolassem com as possibilidades de uma nova vida, a imagem que lhe ficava incrustada era a de um objeto superado que caíra em desuso; e para piorar tudo, aquele trem a azucrinar-lhe a vida, que poderia, aliás, ter sido mais amena para um cidadão como ele, que honrosamente chegara ao fim da linha. No seu caso, a frase de efeito tinha um quê de irônico e verdadeiro.
Se pelo menos pudesse ser poupado daquele apito infernal! Quantos anos, Deus!, por várias vezes fizera projetos de se mudar, mas as súplicas da esposa, somadas às suas próprias incertezas, juntamente com os protestos dos filhos e netos, que consideravam aquela casa antiga um patrimônio familiar, fizeram-no desistir. Sepultada a ideia de mudança, Vicente se prostrara na cadeira em frente à casa, resignado. A convivência com aquele trilho à porta da moradia, como a estar ali a esfregar-lhe na cara a realidade, a concreta realidade, sem meias verdades, provocava-lhe saltos no estômago, num nervosismo reprimido.
– Praga de trem que não me deixa dormir – gritava, por fim.
Quando estava por perto, Pedro tentava mudar de assunto, voltando-se para fatos presentes, aniversário de algum parente próximo, ou a morte de velho conhecido. Era inútil. O homem que gostava de uma boa conversa e de histórias, pelo menos naquele momento, já se desfizera, como as emanações da chaminé de uma maria-fumaça. Apenas ouvia; mal respondia.
Velhos conhecidos passavam e paravam, e, para sua tortura, sempre tinham um episódio da ferrovia a contar.
– O senhor se lembra da viagem ao Pantanal? Que loucura andar naquela tempestade. O senhor tinha mesmo sangue frio para controlar aquele trem em uma situação tão adversa.
Mal sabiam eles que se borrara todo por medo de morrer e não ver os filhos crescerem. Vicente meneava a cabeça pouco amistosa e o visitante, vendo seu descaso, ia-se, resmungando impropérios. O velho estava imune às boas maneiras; já não tinha a mínima pretensão de alegrar alguém, nem a si mesmo.
Pedro sabia bem o porquê de tamanha contrariedade vinda de um coração tão bondoso. Exigente, porém bondoso.
É que as coisas foram se delineando de forma funesta. Quando entrara para a ferrovia, mocinho de tudo, era outra realidade. Antes, passageiros; hoje, produtos das mais variadas origens. Sua mente não conseguia entender as sutilezas do tempo, as pequenas engrenagens que moviam as mudanças que se processavam no subsolo da vida de homens comuns como Vicente. Na sua concepção, toda mudança que houvera tinha um nome e uma causa: esta, a venda da ferrovia ao grupo de americanos de nomes uns mais estranhos do que os outros; nomes estes que nunca conseguira gravar. Aquele, Osvaldo, jovem promissor que assumira seu lugar, na ótica de Vicente o usurpara de seu trono. A aposentadoria que vinha protelando há tanto tempo saltara de repente da mala de um forasteiro de boa aparência, gestos e maneiras polidas. Para os grandes executivos, figuras como Vicente são apenas mais um na folha de pagamento.
– Vicente da Silva Costa?
– Sim senhor – respondeu, meio curvo, submisso, posição que aprendera com o pai sempre que alguém mais graduado lhe dirigia a palavra.
Esses sujeitos chegam de mansinho, sem fazer barulho com seus belos sapatos sempre brilhando e, no momento da má notícia, fazem de uma forma tão educada, profissional, que o infeliz que está sendo demitido, só falta agradecer por estar no olho da rua; mas, passados aqueles segundos, acorda pra vida e vê no buraco em que se encontra. Tinha sido ludibriado.
Vicente se viu, forçosamente, tendo que se aposentar, ou, em outras palavras, ter que sair por uma porta, enquanto Osvaldo entrava pela outra. O jovem operador viera no bojo das mudanças implantadas pelos novos donos. O pessoal fora reduzido ao mínimo necessário e os passageiros já não teriam mais acentos com os quais iriam se preocupar. As companhias de ônibus se alastraram, com novos veículos, mais conforto e preços módicos. Os americanos não se interessaram por esta parcela nos lucros, concentrando-se no transporte de grãos e combustível. Vicente ficou atordoado com tantas mudanças em tão pouco tempo. Homens entre seus trinta e quarenta anos, donos de um linguajar diferenciado, com ideias novas, propondo outros rumos.
– Temos que melhorar nosso desempenho, implantar novas concepções, não podemos ficar inertes. Temos e devemos prosseguir. O governo sucateou as ferrovias, acabaram com os vagões, deixando um legado em petição de miséria, e, não dando conta do desmantelamento que realizaram, resolvem vender. Agora somos nós quem dá as cartas.
Em outros momentos, em lapsos de tempo que sua mente já não conseguia mais distinguir, chegava até ele termos obscuros: privatização, reengenharia, globalização, novas tecnologias e equipamentos. Os velhos vagões foram trocados por modernos, mas sem os acentos que tantos passageiros utilizaram e reutilizaram e que Vicente viu e reviu subirem e descerem tantas vezes que não poderia contar, mesmo vivendo mais cem anos.
O velho colhia essas frases de tempos em tempos antes de receber uma folha que mal pôde ler, como se lá estivesse escrito: você está descartado de nossos planos, sua presença é dispensável. Demorou-se a cair em si; dias e dias passaram sem que decifrasse aquelas palavras que desenhavam num papel cheio de timbres e slogans da nova empresa o nascimento de sua morte. O consolo, ou quase isso, era que a ausência de passageiros dava a fugaz impressão de que ele não era o único a perder. Sentiria saudade das inúmeras pessoas que conhecera e suas infindáveis histórias; as viagens que fizera e os lugares pelos quais passara ficariam em sua trajetória como a pele ao corpo.
Vira a mudança gradativa dos campos que, de pastos e gados, foram dando lugar aos canaviais. Mais uma mudança que lhe imprimia uma nostalgia inútil, sabedor de que a visão de mundo que teria não seria nunca mais a mesma. A perenidade do tempo lhe impingia, sem que ele percebesse, aquela vontade platônica de tudo permanecer imutável e imperecível para se chegar à verdade suprema. Uma luta inglória na qual seria um perdedor em potencial.
Às vezes, a muito custo, Pedro conseguia levá-lo para além da estação, onde a linha se dividia em duas, e uma linha paralela se destacava da principal. Nesta, vagões sem uso permaneciam a um canto, a esfarelar sob a chuva e o sol. Vicente se achegava de mansinho, para não parecer um visitante inoportuno. Acariciava a madeira desfolhada, o desbotado das cores vermelhas de antigamente que agora se tornavam um rosa mais do que apagado. Pedro seguia ao seu lado, olhando seus gestos. Não ousava falar nada, até que Vicente se pronunciasse:
– Quanto tempo!
Os olhos de Vicente não resistiam à certeza de que eles se pareciam: enferrujados e imprestáveis.
– Não fique assim, tem coisas que não podemos mudar.
Pedro tentava apaziguá-lo, mas era inútil. Tentava explicar os novos tempos, as mudanças que se processavam aqui e no mundo.
– Hoje vivemos outra realidade. O governo não dá conta de manter essas ferrovias. Da mesma forma estão transferindo as estradas à iniciativa privada. Bancos e telefones a mesma coisa: estamos “falando espanhol”.
– E esses estrangeiros que compraram o “meu” trem?
– Esses falam inglês. São americanos.
E Vicente fazia cara azeda, como se estivesse com dor de estômago.
Pedro sorria, como se quisesse dar a entender ao avô que não adiantava ele fazer aquela cara, pois as coisas não voltariam a ser o que eram antes.
E Vicente voltava à cadeira; e quando se dava ao trabalho de responder a um colega dos tempos de ferrovia que mais uma vez relembrava o passado, em frases como: “O trem vem chegando, conheço o barulho de longe”, Vicente fazia sua cara desleixada para o ex-parceiro e respondia, entredentes, mais para si do que para o interlocutor:
– Não sei, esse trem fala outra língua, uma língua estrangeira que desconheço.