Arquivo Morto
Herculano, sessenta anos, funcionário público dos mais dedicados, e um dos mais antigos da administração, estava num momento de reflexão. Sentado numa cadeira antiga, patrimônio dos tempos em que ainda iniciava na vida pública, Herculano apresentava um estado de desalento. Não estava triste, porém, muito menos contente. Era como se o velho Herculano desse um tempo e estacionasse para descanso.
Estava num cômodo, comprido, ladeado com prateleiras que se perdem até o teto, preenchidas com caixas de arquivos de várias épocas, em verdade um repositório da história daquele departamento. Cada caixa não trazia apenas documentos, mas vidas ali retratadas. Herculano poderia decifrar cada caixa e relacioná-la com cada época passada no lugar. A referência de 1970 trazia sua ficha de ingresso. Tinha apenas dezoito anos. Em 1980 uma primeira promoção. Na década de noventa suas tentativas de vida política. Um tiro n’água com certeza, que muito lhe custou. Mas não se arrependeu do que fez, apenas carregava uma certa mágoa dos que o traíram. Promessas vãs, resultados desastrosos.
A poeira acumulada pelos cantos, por entre as caixas, parecia não incomodar mais. Herculano fazia parte daquele cenário, alcançado depois de quarenta anos servindo, como ele mesmo gostava de dizer, ao bem público. Herculano e as caixas de arquivo, enfileiradas uma a uma, idênticas, davam a noção de continuidade, de harmonia entre o homem e o objeto.
Herculano, além de servidor do “bem público”, era homem casado, com filhos (casados já) e com netos, que, ao contrário do que possa parecer, não o alegravam tanto. Não, Herculano não era um avô desleixado, sem coração e sem amor; pelo contrário, apenas sua alma não deixava transparecer alegria nenhuma, nem em casa, nem no emprego. Mas a falta de alegria não dava lugar à tristeza, ficava um vácuo confuso.
Levantou a cabeça e viu uma caixa e o ano impresso: 1996. Chegaram as eleições e Herculano foi convidado a integrar um dos partidos oposicionistas e se candidatar à câmara de vereadores. Convite feito, convite aceito. A surpresa foi geral em casa. Nunca pensaram que o pacato Herculano fosse capaz de se aventurar na política.
– Tem certeza que é isso que quer? – perguntou-lhe a mulher em tom cauteloso.
– Sim, é isso – respondeu com força, como a demonstrar a segurança que não tinha.
Vieram as eleições, poucos votos, frustração geral e ainda teve que amargar rebaixamento de posto. O atual prefeito, sabedor de suas colaborações oposicionistas, não o poupou. Herculano viu que o estado democrático tão propalado ainda estava por existir verdadeiramente.
Não que a função à época fosse uma maravilha, mas a sua transferência para o arquivo morto foi não só uma grande decepção pessoal, como gerou revolta nos colegas de setor.
– Onde já se viu um servidor como Herculano ser tratado dessa maneira!
Mas a revolta e a indignação ficaram nas palavras, que foram morrendo com o passar dos dias, com a rotina voltando à normalidade depois da ressaca das eleições. O próprio Herculano se conformou com a situação, achou mesmo que era direito, trabalhara contra, recebera o que merecia, para consternação de sua esposa. Ainda tentou alguns concursos em outras esferas do governo, estadual, federal, mas os anos sem estudo embotaram seu raciocínio, e os mais jovens chegavam atropelando, buscando seu espaço, fazendo cursinhos preparatórios, tentando um lugar nos braços do Estado.
Herculano, o guardião dos arquivos de todas as gerações, contemplou a porta que deixava entrar o sol, mas Herculano não queria sol, e sim o ar impuro do papelão que desintegrava com o tempo, comido pelas traças, pelos ratos que volta e meia apareciam, atrevidos, querendo também um canto naquele lugar tão vasto.
Herculano tinha a intenção de permanecer ali. Estava convicto de que sua decisão não causaria nenhum dano ao erário e nem sua família ficaria tão abalada com seu sumiço. Afinal de contas, ele já não existia mesmo para eles. Herculano considerava-se um peso morto que a cada hora ficava num canto da casa a estorvar a passagem dos que viviam.
Fim do expediente Herculano, silenciosamente, fechou a porta do arquivo e trancou por dentro. Sentou na cadeira e encostou o cotovelo na mesa e apoiou a cabeça numa das mãos. Depois de alguns minutos nesta posição, já um tanto cansado, levantou-se e foi caminhar entre as prateleiras. Cada compartimento correspondia a um ano de arquivo. Olhou um por um com desvelo e nostalgia. Já fazia parte do acervo. Era patrimônio.
Cada lance de anos ouvia vozes; roucas vozes que saltavam das caixas em que o linguajar marcava a década referida. Herculano seguia as vozes. Essa era de Elenise: “Estou avexada hoje, Herculano, tenho compromissos e a mesa lotada”. Fora antes de casar. Tinha uma queda por ela, que preferiu um policial. Novo compartimento e a voz de Osório, estrondosa como ninguém: “Porra, Herculano, ainda não terminou de arquivar esses processos?”. Seguiu mais além e Elpídio surgiu com sua carranca mais do que conhecida. Um pouco mais e encontrava com Pereira: “Estou para aposentar, Herculano, falta pouco”. Herculano deu um leve sorriso; sorriso de compaixão ao amigo Pereira que chegara a aposentar-se, mas morrera dias depois. Chegou a voz autoritária de Tenório anunciando as mudanças: “Você será transferido para o arquivo geral, preciso de pessoa de confiança naquele setor”. A palavra confiança deixava transparecer um subterfúgio para a decisão tomada, que na verdade era uma grande desculpa para não admitir que lhe aplicava uma severa punição por se debandar para o outro lado.
Herculano seguia as vozes, sempre as vozes, que se confundiam nos tempos, ou era ele que se perdia. Trocava pessoas e fatos, frases ditas por uns, colocadas em bocas de terceiros; uma apropriação indébita, descuido do sempre atento servidor da comunidade. Herculano sorria com esse pensamento. Servir, servidor, servo, serviçal. Seus olhos brilhavam, quarenta anos servindo à comunidade. Que belo exemplo para os jovens que avançavam por corredores e setores, bem intencionados e aplicados, mas inexperientes. Herculano os ajudaria nas dificuldades, nas incertezas, nas dúvidas que a pouca idade os fazia se depararem frente a frente com elas. Herculano estaria ali, entre caixas e caixas de arquivo, guardião da memória e do tempo.
No dia seguinte, logo de manhã, o primeiro funcionário que abriu a porta do arquivo deu com uma visão inusitada. Entre as prateleiras do fundo, entre um compartimento mais amplo, encontrava-se Herculano. Estava todo encolhido, como um feto que ainda não nasceu. As pessoas que o viram naquela posição ficaram abismadas com a possibilidade de uma pessoa conseguir se encaixar em espaço tão apertado. Ele estava devidamente arquivado, como bom servidor que sempre fora. Ou ainda, como passaram a dizer alguns, que não perderam a oportunidade de fazer pilhéria, Herculano fora encontrado no arquivo, morto.