Dente de Ouro
Muitos já escreveram sobre os bares e muitos neles convivem como se em sua casa estivessem ou como se fossem seu ponto de trabalho. Este, que no momento me deixo ficar, traz, como todos que possa existir, no mínimo uma figura exótica, excêntrica, esquisita, pitoresca, folclórica ou lendária. Dente de Ouro talvez fosse uma conjunção de tudo isso, do verossímil e de sua negação. Do fundo do bar, da minha mesa costumeira e irretocável, mirava aquele homem que surgira do nada, vindo de terras nordestinas – Alagoas, Pernambuco, Bahia –, lugares fugazmente frequentados e pouco habitados. Nascera em Alagoas, mas para ele o mundo era sua morada.
Desde o início envolvi aquele sujeito numa certa mistificação, por conta de suas múltiplas histórias, seu jeito melancólico de se referir ao passado e do seu porte físico: forte (apesar da idade já denunciar certa decadência), o cabelo pixaim, grisalho, entrando na casa dos sessenta anos, lembrando aquela figura clássica de escravo a fumar um cachimbo na porta de uma senzala. Seu olhar sempre marejado; seus braços longos, dedos e mãos, pelo que podia discernir, grossos, de quem trabalhou duro em serviço braçal. Ele, não sei em que sentido, me lembrava alguém que eu não conseguia definir. A imagem me escapava e ficava apenas sua silhueta refletida na parede gesticulando por inteiro, com as mãos circundando ao redor, tentando com isso fazer com que o entendesse.
Sempre a uma dose a mais do que a maioria dos fregueses, Dente alternava seu humor de falastrão para a sisudez e o silêncio. Poucas vezes o vi irritado como naquele dia em que troçaram de seu dente de ouro, dizendo que tinha comprado na loja do Biluca por uma ninharia.
– Prova seu safado ou eu quebro sua cara!
Encolhi-me à parede com medo de que a bravata chegasse às vias de fato; outros agarraram o primeiro objeto que tinham à mão – garrafa, cadeira –, mas aos poucos ele foi serenando e seu oponente, que fora preso pela gola da camisa, percebeu os dedos se afrouxando e, com alívio, viu-se livre de sua fúria. Entenderam que, apesar das aparências, Dente era homem mais de falar do que de agir.
– Se aquiete homem, não vale a pena.
Não valia, e assim, não só o seu ofensor saía ileso, como o bar continuava intacto, com Dente encerrando a discussão com um humilde “me desculpe”. Encolhia-se numa mesa como cão que levou bordoada e, sentindo dor, ficava ali num canto. Sua brabeza resumia-se nesse soluço compassado, meio que não querendo sair de todo, ficando entalado na garganta, entre a vontade de explodir, a força de controlá-lo, e a complacência de se deixar entregar ao pranto. Encerrava a noite ou o dia e não mais se ouvia sua voz. Todos olhavam com certa comiseração àquele homem que sofria. Eu tive vontade de abraçá-lo, levá-lo para casa, dar-lhe de comer, uma xícara de café, e oferecer-lhe uma cama para dormir. Não fui além da vontade e covardemente resignei-me ao meu lugar e ao meu copo de cerveja.
No dia seguinte, quem esperava ver um homem acabado, em frangalhos, azedo até o limite do insuportável, se enganava. Lá estava Dente a fanfarronar:
– Pois é como tô falando: naquele tempo o bicho andava solto. Só por Deus para escapar vivo. Ninguém saía de casa sem sua garrucha.
Contava sobre sua vida de adolescente e juventude em Alagoas, terra de ninguém, onde levou vida de cão, trazia a faca entre os dentes e, dava a entender, matara um. De Alagoas, já homem feito, fora tentar a sorte no garimpo de Serra Pelada nos idos da década de oitenta. De lá trazia o dente e o apelido que o tornara famoso desde o lamaçal das minas até à porta do bar de Neco. Dente era um daqueles personagens que a vida vai esculpindo ora aqui, ora ali, espalhando-se pelos quatro cantos da cidade e, enredando-se por entre ditos e histórias que a grande massa conta e reconta todos os dias, se perde entre o provável, o talvez, o quase ou o será, caindo no campo das suposições.
As noites de Dente no bar terminavam não nos braços acolhedores de uma mulher cheirosa e cheia de saúde, quase moça, que de certa forma seu corpanzil ereto, postura de negro forte e decidido ainda atraía, mas arrastado por músculos tão suados quanto os seus, tendo os calcanhares a fazerem marca no chão da calçada.
Não conjugaria o verbo casar por nada deste mundo, pois a vida de celibatário lhe caía bem e, como gostava de dizer, sua vocação era manter-se livre, sem amarras. Mas não ficava sem mulher. “Não consigo, é como vício, só largo depois de morto”, e sorria com todos os dentes à mostra, tendo apenas Neco e eu como ouvintes, pois já era tarde da noite e todos tinham ido embora.
Seu ritmo de vida se alternava entre as bravatas de alagoano valente, como ele mesmo dizia, e de momentos de total desalento. Gostava da cerveja do Neco com quem travou amizade logo que chegou à cidade e, depois da desconfiança inicial do dono, que conseguiu afastar com uma boa conversa e um agrado extra: “Só a cerveja do Neco me satisfaz”, tornou-se frequentador dos mais queridos. Já no bar vizinho não teve o mesmo sucesso, pois o proprietário considerava o alagoano um sujeito matreiro, de fala mansa, e dessa gente tinha receio.
– Sujeito orgulhoso, não gosta de nordestino, “seu” Neco.
E ficava ali a borboletear de uma mesa a outra, de conversa com um e com outro. O que o distinguia daqueles rostos magros e amigos da cirrose era seu dente de ouro.
Suas andanças por Serra Pelada eram conhecidas de todos, mas sempre tirava uma nova história da manga; um caso pitoresco, muitos amores fortuitos e muito, muito ouro. A sua penura atual era motivo de censura e chacota.
– Ouro? Deixa de mentir seu negro safado!
– Um merda como você não ia conseguir tanto ouro assim.
Outros, menos descrentes, referiam-se a outra versão:
– Podia estar rico se não enfiasse tudo que ganhou no rabo dessas vagabundas.
– Tudo por causa dessas putas sem eira nem beira.
Via na voz de cada um o tom de censura, mas distinguia-se também uma ponta de inveja, pois no fundo acalentavam a ideia de que poderiam ter sido eles no lugar daquele negro idiota que não soube aproveitar a chance que Deus lhe deu.
Dente de Ouro ficava neutro, a sorrir de canto de boca, a achar graça em tudo que falavam sem desmentir ou reforçar sua veracidade. Aquele ar de mistério deixava todos com indagações das mais variadas, procurando arrancar dele uma confirmação do que diziam e, assim, iluminar um pouco seu passado controverso. Mas Dente ficava na sua, deixando que se criassem as inúmeras lendas sobre sua trajetória. Elas já haviam entrado naqueles recônditos da vida onde se perde o fio da meada e nunca se sabe onde começa e onde termina determinada história, ou onde começa e onde termina a verossimilhança de seus fatos ou se a imaginação de quem a conta preenche as lacunas que o tempo e a memória já não dão mais jeito de reconstituir.
Dente de Ouro narrava suas peripécias por muitas casas, onde muito rabo de saia sentara em suas pernas e um par de vezes teve que fugir de bala encomendada, isso quando o próprio cornudo não tentava ele mesmo dar jeito de liquidar com Dente. Não conseguiram. Cansado do garimpo, veio, todo esmolambado, escorregando ladeira abaixo, parar, não se sabe como, na cidade de Penápolis.
– Tive que chupar muita cana até achar esse fim de mundo.
Fazia referência ao canavial farto que circundava a cidade.
O que sobrou de suas andanças pelas terras do garimpo foi seu dente de ouro. Para demonstrar a relíquia ria fácil, às vezes, forçosamente. Como bebia muito, soltava a língua e as coisas passadas pareciam rodopiar ao seu redor. Dizia bobagens, relembrava histórias já ditas inúmeras vezes, ditas inclusive, de novo há poucas horas. Incomodava os colegas. Estes, já vendo que estava naqueles dias, não davam trela. Deixavam que falasse à vontade, até cansar. Eu o admirava pelo simples fato de nunca imaginar uma vida como a sua. Sair de casa, desbravar terras distantes, ser livre, ser ele mesmo e mais ninguém. Enquanto isso, eu permanecia à deriva de um emprego mal remunerado, gasto boa parte no fundo daquele bar, preso a uma mesa pegajosa e satisfeito por ainda poder beber minha cota diária.
Seu desprendimento por tudo, até sua aparente falta do que fazer (vivia de pequenos biscates, o suficiente para beber e comer), me davam certa noção de liberdade. Fazia do bar do Neco sua segunda casa. Naquele dia, que já avançava na noite, passara da medida. Tanto que falaram:
– Dente quebrou o Neco.
Neco, por trás do balcão, sorriu amarelo. Sabedor de sua fama de caloteiro, sempre procurava controlar suas bebedeiras para não extrapolar ao ponto de não conseguir receber. Por outro lado, nunca tivera problemas com ele. Por isso, vendo que o pobre não estava bem, deixou que bebesse à vontade. Por momentos ficava pensativo, olhar perdido sabe-se lá onde. Eu ficava a uns três passos de sua mesa, mas nunca tive a ousadia de sentar com ele e conversar como se fôssemos amigos antigos. Suas histórias, que saíam daquele rosto cadavérico – pouco comia –, tinham mínimas chances de serem verdadeiras, mas o que importava era como ele as contava. Sua língua não parava um instante e casos e mais casos surgiam de sua boca como água de uma fonte.
– Consegui reunir quase um quilo de ouro purinho, purinho, mas troquei tudo por uma esmeralda.
– Ficou louco?
– Conta outra que essa não engana nem criança.
– Sim, troquei por Esmeralda do “seu” Tonho. A filha dele, cambada!
A gargalhada reboava no bar e caía mansinho do outro lado da rua. Alguns que ali passavam se assustavam.
Naquela noite saiu às altas horas, aos tropeços, pisando alto, falando mole, dançando de um lado a outro da rua. Às vezes o chão aprecia subir e ele enfiava a sola do sapato no asfalto, como se uma saliência brotasse do nada. Tencionaram em ajudá-lo, mas recusou. Morava perto.
Seu estimado dente de ouro ganhou mais fama que o próprio dono. Pelo menos grande parte da cidade já se habituara às fanfarronices e peripécias do homem. O seu valor era como as histórias que contava: de um mísero níquel a valores estratosféricos. E como suas histórias eram o que eram, ficávamos sem saber a verdade.
Pois bem, como ia dizendo, naquela noite seus olhos estavam mais marejados, suas lamentações mais agudas e a tristeza acentuava seu semblante. Ameacei dizer algo, estender-lhe a mão e pousá-la carinhosa nas costas, mas não tive, mais uma vez, a coragem suficiente. Me limitei a olhá-lo como fiz por todos os dias que por ali permaneceu.
Soube dias depois que naquela noite ele foi atacado por três moleques que bebiam ali no bar, tendo o trio arrancado-lhe o dente com uma faca. Não morreu, mas o único brilho que ainda advinha de sua magra constituição se fora. Continuou passeando pelo bar do Neco por uns tempos, mas já não falava como antes. Permanecia taciturno, de boca fechada. Todo o significado que porventura existia em suas andanças por inúmeros lugares não tinha mais valor do que aquele dente e suas histórias. Ao perdê-lo era como se sua alma deixasse seu corpo e partisse para outras terras distantes.
E foi assim que Dente de Ouro se foi. Ninguém o viu mais. Não se despediu de ninguém. Disseram que num momento de total desequilíbrio teria voltado para Serra Pelada em busca do ouro perdido, como se aquelas minas ainda pudessem existir; para outros teria ido atrás de seu dente roubado por aqueles moleques atrevidos. Ou seria mais um caso inventado por aquele negro para quem histórias é que não faltavam; daquele negro falastrão que desde o momento em que o vi me fez lembrar alguém, distante, próxima, não sei ao certo, e que me inspirava a largar tudo, chutar aquela cadeira, aquela mesa sebosa, mandar às favas aquela cerveja mal conservada, quente e que fatalmente me daria uma enorme dor de cabeça, mas em vez de jogá-la nas fuças do Neco, saboreei até o último gole.