UMA CADELA MISTERIOSA
Será que haverá algum zoólogo capaz de decifrar o mistério envolvendo uma cadela que surgiu, repentinamente, na porta do meu apartamento? Ora, pensará alguém, que dúvida, que pergunta mais banal e boba! Poderá até ser, mas vamos ao que me aconteceu.
O fato inusitado só me deixou mais intrigado por um motivo muito simples e peculiar: por que será que, entre vários condomínios existentes na rua onde moro, aquele animal veio se aconchegar justamente na porta do meu apartamento? E olha que resido no segundo andar! Imediatamente cheguei a pensar que o primeiro motivo seria por causa de um simples e surrado tapete que ali estava. Ledo engano. Tal hipótese foi descartada, uma vez que na porta contígua também havia um, por sinal até bem mais bonito. E no primeiro andar? Logo na entrada do prédio? Também havia outro tapete, por sinal onde ela poderia ficar bem deitadinha sem ter o trabalho de subir uma escada. Então o motivo da sua opção, portanto, não era nada de tapete. Era outro que ninguém conseguia decifrar. Bem, o certo ou errado é que aquela cachorra de porte médio, cor preta, surgiu do nada e ali ficou. A princípio numa boa, quieta e só observando o movimento das pessoas que por ali passavam que ora admiravam ora se assustavam. Por falar nisso, quem levou um tremendo susto foi a minha filha, logo que ela chegou à noite do trabalho. Depois que entrou fez a indefectível pergunta:
-Pai, o que essa cachorra está fazendo aqui na porta?
- Não tenho a mínima ideia, filha. Depois veremos o que vamos fazer com ela.
Já a minha esposa também não aprovou a presença súbita daquela cadela misteriosa e logo procurou um meio de enganá-la, levando-o para outra rua mais distante. Ela chegou a pensar por alguns instantes, que após enganá-la e voltando rápido de lotação, estaria livre daquele animal. Foi outro grande equívoco. Logo que ela entrou, contando a sua façanha, por acaso, após alguns minutos fui abrir a porta do apartamento, aleatoriamente e eis o que vejo! A "preta". Sim, foi este o apelido que logo pusemos naquela cadela teimosa e acima de tudo, misteriosa, persistente. Como já era tarde da noite, resolvemos dar o caso como encerrado e, por enquanto, deixá-la ali mesmo, coitadinha.
No dia seguinte, bem cedo, quando fui trabalhar na minha banca de jornal no final da outra rua, quem me fez companhia sem eu chamar? Sem dúvida, a "preta". E lá na banca, logo que chegou ela já arrumou um cantinho para ficar. Não me importei. Aceitei até as gozações de alguns clientes curiosos do tipo assim:
- O negócio aqui agora está diferente. Temos até “segurança”! E assim, sucessivamente.
Na hora do meu almoço ela me seguiu tranquilamente. Tal qual fizemos na noite anterior, demos comida e água para a preta. Era impressionante o apego daquele animal com relação à minha família. Tanto assim, que já no terceiro dia, a minha esposa tomou a iniciativa de comprar alguns apetrechos para aquela cachorra, que pouco a pouco foi nos cativando pela sua persistência e um olhar lânguido e pidão. E como à primeira vista não parecia doente, tome coleira nova, sabonete, ração etc. Agora a preta não parecia que estava levando uma vida de cachorra. Estava sim, bem alimentada e limpa. O único problema é que, algumas vezes, estranhava alguém, principalmente quem a ameaçasse com algum gesto brusco. Ela então começava a latir insistentemente que chegava a assustar o pseudo agressor. E agia sempre assim. Tanto na banca como também em casa. Não aceitava certas brincadeiras de qualquer pessoa. Quando percebi que algumas vezes ela saía do sério, isto é, já estava atrapalhando o meu serviço, não pensei muito. Tinha que encontrar um meio de me livrar daquela cachorra o mais rápido possível. O que fiz? Procurei imediatamente a subprefeitura do meu bairro, por sinal, nessa minha visita a dita cuja estava na minha companhia. E nessa ocasião ela deu um “show”, latindo para quem a encarasse. Um funcionário me forneceu o telefone do Departamento Zoonoses. Incontinenti, enquanto eu entrava em contato com alguém, um guarda do local onde eu estava, tentava inutilmente levar aquela cachorra para fora do prédio. Até que teve um momento que ele conseguiu. Mas foi por pouco tempo. Ela deu um drible à la Garrincha e logo estava no meu pé. Através daquele fatídico telefonema não obtive êxito. O pessoal das zoonoses deu a entender que só interessava por cachorro de raça. Será que era para vender, posteriormente? Cheguei a pensar essa asneira. Mas vai saber!
O certo (ou errado) é que resolvemos continuar cuidando da preta, apesar dos pesares. Mas como reza o adágio popular: “Deus escreve direito por linhas tortas!”. Certo dia, sem que eu menos esperasse, apareceu alguém lá na banca de jornal e demonstrou interesse em cuidar daquela cachorra. Novamente, não tive tempo nem de pestanejar. Antecipadamente já agradeci e desamarrando a corrente que a prendia, entreguei-lha, prometendo no dia seguinte lhe trazer os outros apetrechos que a minha esposa comprara para a higiene e alimentação daquele animal. Em seguida aquele senhor levou a preta que, embora ele a segurasse pela corrente, mesmo assim, como se entendesse de alguma despedida, logo nos primeiros metros que se distanciou ela forçava um pouco a sua coleira e tentava olhar para trás, como se me procurasse para se despedir. Pobre cadela misteriosa. Quando cheguei à minha residência, tanto a minha esposa como demais familiares, como já estavam se acostumando com aquele animal, já foram logo indagando:
- Você deixou a preta lá na banca?
- Calma! Ela agora está sob outros cuidados. Eu entreguei a um cliente que passou lá. Como ele falou que estava precisando muito criar um cachorro, pois ele mora em casa, resolvi dá-la. Quem sabe lá ela terá até mais liberdade no quintal grande à sua disposição! Ao saber da notícia, ninguém reclamou. Ainda bem. Pelo menos eu não fizera nada de errado. Tentei e consegui o melhor para aquela intrusa cadela que agora estava em outro habitat.
Após dois dias de alívio, eis que, ao chegar para abrir o meu ponto comercial fui recebido nada mais nada menos por quem? Acertou quem falou preta. Pois é, a teimosa cachorra ficou no meu pé, abanando a sua cauda, como se demonstrasse um grande “contentamento” por me reencontrar. Como me pegou de surpresa, fiquei realmente sem entender aquela súbita “visita”. Simplesmente fiquei só aguardando o seu novo proprietário vir buscá-la. E foi o que aconteceu. Não demorou muito, alguém daquela casa chegou e levou a preta de volta. Após essa primeira fuga da cachorra rumo à minha banca, ocorreu mais uma e depois nunca mais a vi, o que não deixou nenhuma saudade, o que não vou negar.
O tempo foi passando. De vez em quando o responsável por preta, sem que lhe perguntasse nada, fazia algum comentário sobre ela. Falando que estava sendo útil, mas por outro lado, estava ficando muito brava com os estranhos. Mas, pensando bem, esse era o seu principal objetivo quando se prontificou cuidar dela. E pelo visto, ele não a deixava sempre presa. Soltava-se de vez em quando. Prova é que não demorou muito ela ficou prenha, jogando no mundo mais alguns cachorrinhos. Depois dessa façanha, eis que certo dia aquele senhor chegou ao meu local de trabalho com uma caixa. Confesso que logo que eu vi aquilo não entendi patavina. Sem muitos comentários preliminares ele apenas colocou aquele volume no chão e em seguida, pediu que eu abrisse. O que havia no seu interior?
Dois lindos filhotes da preta, que segundo ele me contou, quando ele foi pegar os cachorrinhos e colocá-los dentro da caixa, ela ameaçou atacá-lo seriamente. Só não conseguiu porque ele se escafedeu. Não dava para ele explicar que os seus filhotinhos não seriam doados, apenas estava levando para um rápido passeio.
Para finalizar, vale registrar que não foi à toa que um ex-ministro da República, ao se empolgar na hora de falar do seu cão de estimação, chegou a qualificá-lo até como ser humano. Bem, exagero à parte, resta-me voltar a fazer a mesma pergunta do primeiro parágrafo desse conto: Será que haverá algum zoólogo capaz de me explicar uma súbita opção de uma cadela, apegando-se a uma família totalmente desconhecida e o que se torna difícil de entender, em meio a centenas de outras localizadas no mesmo bairro?
Quem sabe algum dia ainda esse mistério será desvendado e aí, sim ficarei mais contente. O mesmo acontecendo com a minha família. São os mistérios da vida que surgem quando menos esperamos...
João Bosco de Andrade Araújo
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