Eu vi o índio

Se eram 9:50 ou 10 da manha eu não lembro direito, mas sei que foi ainda no intervalo do colégio. Não me lembro também qual tinha sido a aula daquele dia mais, pois a ordem das matérias eu nunca me importo, contanto que as estude quando chegar em casa. Isso também não importa quando você está morrendo de fome, doido para comer uma coxinha. Pois bem, lá tinha batido o intervalo de 9:40 e eu louco para comer a coxinha de galinha catupiri. Era a semana do índio, para mim, semana da hipocrisia. O colégio como sempre resolveu fazer uma pequena homenagem ao dia do índio antes de nos ceder o prazer da comida, pedindo para que os alunos ali presentes no pátio formassem uma roda para assistir uma apresentação.

Quando me lembro de quando era criança, sei que minha mãe contava para mim das épocas em que minha escolinha da alfabetização, prezinho, trazia um índio para nos apresentar, enquanto aquela gurizada toda pintava a cara para fingir que era da tribo da Pokahontas. Claro, eu me divertia, era criança, não via a situação como vejo agora. Não me lembro de nenhuma emoção nem de nenhum índio que tinha realmente visto, um de verdade. E isso para mim pouco importava. Acho que não existem mais índios verdadeiros, nativos, preservados, entre aqueles que o pessoal da escola mandava buscar para se apresentar. Índios que vivem na pobreza, vestindo bermuda e comendo farinha com água, não é índio, é o que restou do que era índio. Índio de verdade para mim é aquele que continua intocado pelos “homens brancos” em tribos onde ninguém sabe a localização e matam quem chegar perto.

Pois bem, opiniões a parte, ocorreu que, em pleno terceiro ano, o colégio resolveu trazer uma equipe de uma tribo de índio, da qual não me lembro o nome todo, mas sei que eram dois nomes e o último era Sururu. Aqui na Bahia existe o famoso caldo de Sururu, feito com frutos do mar. Mal a mulher apresentou o nome da tribo Não-Sei-O-Que Sururu, metade das pessoas começaram a murmurar “caldo de Sururu” e rir baixinho. Essa é a prova de que quando você deixa de ser uma criança demente, você continua demente. Não vou negar, eu participei da demência. E penso que se fosse a minha tribo, eu não ia gostar de um monte de pivete branco brincando com ela e comparando com comida, mas o que a hora do intervalo não faz com as pessoas, não é mesmo?

Foi então que eu tive a primeira impressão naquela tarde. Para a maioria das pessoas ali, aquilo era a maior porcaria, lenga-lenga de colégio. Mas, eu vi o índio. Não era lá aquilo que eu chamo de índio. Eram 4 índios homens, daqueles pobres que vestem bermuda, comem farinha com água (se tiverem farinha no dia) e trocam suas mercadorias por bebida, pois não têm noção nenhuma de venda. Mas era o índio. Eu pessoalmente não entendi nada do que eles estavam falando entre si. Eram todos morenos, dois com aparentemente 20 anos, outros dois parecendo terem 30. Três altões e um baixinho de cabelo espetado, um dos que pareciam ser de 30. Um dos que aparentava 20 anos tinha os olhos vermelhos e o olhar meio perdido. Na hora me veio a primeira coisa na cabeça: Droga; mas ele estava muito sóbrio para ser isso. O que mais me impressionou foi o jeito de descaso deles. Eles ficavam em pé com as mãos na cintura e o rosto de deboche como esses rapazes vagabundos e ocidentais. Não tinham postura de índio. Para mim não eram índios coisa alguma.

Por fim, começou aquela tal apresentação. Eu fui assistir por um simples motivo: Os índios, que para mim não eram índios e sim miseráveis pessoas, não estavam ali a toa; Eu queria dar um incentivo. E lá estava eu, segurando minha coxinha catupiri, na frente do amontoado de gente para ver a apresentação, por consideração. Na minha cabeça não eram índios, mais eram pessoas miseráveis, necessitando de qualidade de vida, com uma religião e costume diferentes, nada mais. Mas tive a impressão de que estava enganado sobre isso em poucos minutos de encanto. Eles vestiram uma saia feita de folhas de bananeira, com cocás na cabeça, com flautas feitas de madeira manualmente, e começaram a fazer os passos.

Acredito no sangue e na descendência espiritual, racial. Por mais que não os considerasse índio de verdade, havia naquela dança deles, naquele ritual, algo de índio sim, a única coisa que restava de índio neles. As vozes se juntavam e se divergiam com uma harmonia enorme, com um ritmo tão doce quanto uma canção de ninar, combinando com as balançadas dos chocalhos e as batidas dos pés no chão. Eram vozes fortes e, por mais que eu não entendesse nada do que eles diziam, algo tocou no fundo de minha alma. Senti borboletas no estômago e a face esfriar, empalidecer. Os olhos quase brilhavam de encanto, se minha cara não fosse meio abestalhada na hora. Tentava disfarçar isso quando mordia a coxinha de galinha, mas não tirava os olhos da dança. Até os movimentos dos braços e os caminhos que eles faziam me trazia uma imagem de magia na cabeça, algo sobrenatural, lembrando-me noites escuras, iluminadas com fogueiras, cores fortes com o azul marinho e o rosa choque, o vermelho, o laranja. Era como se dentro de mim houvesse algo de índio que se alegrava de ouvir aquelas músicas novamente, resgatando coisas perdidas em minha pele de europeu e meu sangue de colonizador. Eu vi o índio, e nada mais importava para mim no momento.

Saí do intervalo com as músicas na cabeça. Dormi de noite ouvindo as vozes dos homens. Sinceramente, acho que eles não ligaram a mínima para aquele bando de gente branca e vestida de farda, os ouvindo só por ouvir, sem nada entender. E para mim pouco adianta trazer um bando de RESTO de índio para um colégio, onde a maioria dos estudantes acham a dança idiota, não ligam a mínima e tão pouco entendem a língua dos caras; tão pouco acreditam nos deuses que eles acreditam. Qual é a importância que tem, para você, uma dança religiosa de uma religião que não te pertence? Nenhuma. E acho que aqueles RESTOS de índios sabiam disso. Como não tive oportunidade (nem coragem) e interroga-los, penso que eles só aceitaram ir até lá pelo dinheiro para poder comprar comida para a sua tribo. Índios são pessoas e pessoas não são idiotas. Eles não iam dançar para um monte de gente estrangeira, sabendo que não iam participar em nada, sem ganhar algo em troca. Pensado e comprovado. Depois da apresentação, eles ficaram até de noite no colégio, vendendo as suas mercadorias para quem quisesse, até a hora do colégio fechar.

E, o que me fez escrever sobre isso? Foi simplesmente a sensação estranha que tive, apenas isso. Por mais que não fossem índios puros e híbridos, índios reservados; Por mais que fossem já índios transformados e estragados pelas mãos dos brancos, resultado do massacre dos colonos e atormentados pelas invasões em sua tribo, havia algo de índio neles, tal como havia em mim também. Houve uma interligação da alma, algo em comum entre gentes tão diferentes. O encanto que tive foi de extrema estranheza. Se vi realmente algum desses quando era criança, não lembro e não entendia a sua situação, por isso não devo ter sentido tão espanto quanto senti agora. Fiquei impressionado. Tocou. O índio não eram aqueles quatro de bermuda que comem farinha com água e vendem mercadorias. O índio era aquele dentro daqueles 4 homens e dentro de mim. Era aquele que se mostrou a mim através do canto e da flauta de madeira; a magia. Eu vi o índio, ainda vivo em minha frente.

JHM
Enviado por JHM em 15/04/2009
Código do texto: T1540775