O TRISTE FIM DE JOÃO

João sentou-se na cama pensativo. A casa burburinhava. Saiu em trajes de domingo para comprar cigarros. Comprou um jornal e um maço de Hilton. Procurou um banco de praça para acomodar-se. Ali, perto da banca de jornal, mirando um banco de madeira sobre a sombra do flamboyant escarlate, imaginou-se lendo e fumando. Pintou mentalmente um quadro de si. Gostou da pintura e foi acomodar-se da forma como imaginara. E era realmente um quadro bonito de se ver. Diria um admirador de arte que se tratava de um jornalista dos anos 40, com sua barba, amarelada pela nicotina, por fazer. A camisa bege desabotoada no colarinho. As calças sujas, o Ray-Ban, o cigarro no canto da boca, o sol de domingo, nem forte nem fosco. Os sapatos rotos como todo o conjunto e o relógio com o vidro arranhado. Leu e fumou por alguns minutos.

Não longe dali uma pessoa discutia ao telefone. João a observou. As notícias que lera iam afastando-se da sua cabeça na medida em que aquele ser humano de aparência magnífica se aproximava. Dobrou o jornal displicentemente e o colocou de lado. Inclinou-se para frente como que para tentar escutar. Não havia distância próxima o suficiente para tanto. A figura magnífica que discutia ao telefone pára. Coloca a mão esquerda sobre os quadris e inclina a cabeça um pouco. A mão que segura o telefone afasta-se da orelha e vai para a frente do rosto com o braço esticado. –Adeus! João conseguiu entender do grito mais por leitura labial do que pela sonora despedida.

João recostou-se novamente no banco e esquivou-se de um olhar penetrante. Sentiu, num embaraço, as orelhas aquecerem e o coração disparar. Pego em flagrante o vouyer. A pessoa que antes discutia ao telefone veio encontrar com João, não num andar a esmo, mas firme, de quem sabe exatamente aonde seus passos a levarão. Parou em frente ao nosso jornalista. Era uma mulher. Usava sandálias rasteiras brancas. Tinha as pernas e todo o resto do corpo da cor do bronze. Trazia uma faixa de seda azul marinho amarrada no vestido também azul, contudo o vestido era bem mais claro. Os cabelos cacheados espalhavam-se pela omoplata direita e era uma omoplata feminina, todavia bem torneada. Os olhos eram de um verde quase fosco, uma mistura de três cinco partes de absinto e uma de café. Não era alta. Mas o corpo esguio dava-lhe a aparência de ser maior. Ou talvez fosse o cabelo armado. Era definitivamente uma bela mulher. João pode observar tudo isso em menos de um segundo. Foi o segundo que ela levou entre o parar e pedir um cigarro.

-Me dá um cigarro?

João, sem dizer palavra tirou do bolso da camisa o maço inteiro e estendeu à mulher. Pensou ainda que devesse ter tirado um único cigarro. Era tarde, ela tinha apanhado o maço, e se sentado ao lado dele. Manchou um cigarro com seu batom vermelho e esperou que João o acendesse. Ele acendeu.

-Por que é que você insiste em me seguir.

-Não segui. Estava aqui lendo o jornal e fumando.

-Você sempre está aqui lendo e fumando quando sabe que eu vou passar.

-Hoje não.

-Como pode.

-Dia de faxina, a Sílvia está em casa limpando tudo que vê. Quase me pediu pra tomar banho com aquele olhar meio torto.

-Bem que você podia tomar um banho. E essas roupas? Não entendo como é que você conseguiu se casar. Aposto que não era assim no começo. Foi relaxando com o tempo não foi? Todos os homens são iguais? Eu odeio o jeito como vocês olham pra nós mulheres, por acaso acha que somos um bife suculento, um carro esporte?

-Calma, uma pergunta de cada vez...

-Olha, esquece.

João, atônito com tanta agressividade, quis perguntar por que ela sempre ficava tão na defensiva. Não perguntou. Apenas a olhou um par de vezes para aqueles olhos de vidro antes dela se levantar.

-Já vou.

-Qual é o seu nome?

-Uau!! Achei que você nunca ia perguntar. Por que vocês são assim?

-...

-Ana. Tchau.

-Tchau Ana.

-Você sabia que um dia pode nunca mais me ver? Você me vigia todo dia. Sabe que eu passo por aqui, mas não sabe onde eu moro. Sabe que trabalho no banco, mas não sabe se serei transferida. E olha que eu posso muito bem ser transferida. Você sabe que eu tenho um namorado, sabe que ele me trai. O que mais você sabe?

-Nada...

-Exatamente. Talvez eu queira até sair com você, mas você nunca me pergunta nada. Você me olha com desejo. Por que não me convida pra sair logo de uma vez?

-Você gostaria?

-Tarde de mais. Adeus pra você também.

A bela Ana saiu. Desta vez não estava tão decidida. João limitou-se a olhá-la. Assim que dobrou a esquina e perdeu-se pelas ruas vazias, João levantou-se também. Acendeu um cigarro e voltou para casa fumando. Pensativo. Na porta do seu prédio, o Edifício Azul, olhou para trás. Ninguém na rua. Subiu sem cumprimentar o jovem porteiro. Não gostava da cara daquele sujeito. Achava que aquela arrogância juvenil não combinava com a profissão de porteiro. Em casa deu com a mulher preparando o almoço na cozinha.

-Não tem carne, se quiser compra um galeto na padaria.

-Dispensável.

Sentou-se na frente da TV bastante velha, porém com ótima recepção. Ligou no programa de esportes. Pensou naquela mulher que agora tinha um nome. Ana. As três letras daquele lindo nome rodavam em sua cabeça. ANA. AAN. NAA. ANA. Naquele momento sentiu que um capítulo enorme havia sido aberto na sua vida. Fechou os olhos com os pés para cima, sobre a mesa de centro. O grito da esposa o tirou de um lugar tão longe e tão antigo quanto o próprio mundo.

-O almoço está na mesa.

-Ana.

-Do que você me chamou?

-De nada.

-Você disse Ana?

-Não.

-Você não anda batendo bem.

-Me deixa.

-Está deixado.

Comeram calados.

Três semanas e meia depois João ainda ia à praça. Não vira Ana desde àquele domingo fatídico. Uma angústia começava a corroer-lhe por dentro. Nunca imaginou que aquela mulher, a alegria do seu cigarro matinal, partiria. Esperava um mínimo de consideração. Um último encontro. Amava-a deveras. Amava-a tanto que não ousava falar-lhe. Amava tão desesperadamente que se apartara do mundo, encruara-se numa redoma tão íntima e intransponível que o contato social tornara-se impraticável. João nessas últimas três semanas ficou intratável, um ermitão surdo, mudo, cego tateando no escuro, vagando pelo caminho que ia do Edifício Azul até a praça. Este trajeto tornara-se tudo na vida dele. Ana não estava mais no roteiro.

Ana partiu.

A última notícia que se tem de João é dada por alguns raros amigos. Dizem que não sai da frente da TV. Assiste às corridas, mas não fala nada. Parou de comer. Enlouqueceu. Não vê os filhos pequenos. Eles que já não gostavam da madrasta, agora não gostam também do pai. São imaturos demais pra entender a loucura. Acham que apenas que o pai servia para comprar-lhes refrigerantes. Um passeio raro no parque. Como isso não mais ocorre, esquecem-se de João pouco a pouco.

João enlouqueceu, assim dizem a grosso modo.