As Árvores Ao Longe
Era um dia apenas.
Tubos que entram em meu corpo. Veias que não existem. Tubos nas narinas, em meus braços. Sou feito de entradas e saídas. Um líquido que ferve em mim, adentra minhas entranhas e chega ao fraco coração. Um coração de pilha. Um coração que lateja misérias de uma vida desregrada. Vida? "Que vida, meu amigo...", eu poderia dizer a mim mesmo, diante de um espelho imparcial que fosse testemunha de minha vida. Era um dia apenas. O sol entra no meu quarto e ilumina a mísera parede sem vida ao lado do meu criado-mudo. O sol, este sim, parece imparcial às minhas dores de agora. Antes ele só me avisava. O que estava por vir? Onde tudo isso começou? Quando nasci? Eu não sei, mas as árvores ao longe, árvores grandes da praça, são também testemunhas oculares da vida solta que eu não insistia em prender. Onde estou agora? Pergunte-me algo... Diga-me que estou bem, apesar dos tubos que me cercam. Apesar desse medidor de batimentos cardíacos piscando e avisando quando eu estiver morto-vivo. Diga-me algo, então! As testemunhas se calam e eu observo minha cela branca cheia de tecnologia. A TV está morta para mim. Mulheres televisivas não me trazem prazer nenhum. Prazer idiota! Por que se prender a algo tão fútil, tão relativo quanto o prazer mídico? O que estou dizendo? Sou vítima do cigarro que, subjetivamente, me fazem fumar. Sou vítima da moda que me fez ir as lojas estourar meu cartão de crédito. Sou vítima da mídia que deve estar fazendo outra vítima agora. Diga-me algo, então! Diga-me alto, pergunte-me como. "Em que posso ajudar?", ela disse quando fui à farmácia. "Eu quero aspirina e aqueles comprimidos para dor de cabeça...", ela foi imparcial, não perguntou nada. Acho que até agora não perguntou nada, nem sabe que aqueles comprimidos me fizeram vir aqui. Portanto, diga-me algo!
As árvores ficam para lá e para cá numa valsa com o vento. Elas são altas, algumas dão frutos, porém, outras só ficam para lá e para cá. Reza a lenda que as árvores são feitas de espíritos que estão eternamente presos na terra para pagar seus pecados. Serei eu uma árvore? Tenho tubos que são raízes, mas não tenho frutos, o único fruto que me nasceu, me nega até hoje. Filha... Nem um dia me visitou. O que eu fiz? "Filha, é o papai", eu disse ao telefone. "Não ligue mais, não quero falar com você!", ela desligou. "Filha, por favor, me dê outra chance...", implorei quando fui visitá-la. "O que você fez foi imperdoável... Sinto muito, mamãe que o perdoe, você nunca terá meu perdão...", ela fechou a porta da casa. Fui embora. Quando o vento soprou, vi as árvores dançarem ritmadas na rua. Era algo belo, o véu negro da noite já começa a se erguer ali no horizonte. Foi assim também quando voltei do trabalho. Havia perdido o emprego, não queria olhar para ninguém, minha esposa, mesmo nas más horas mantinha um sorriso forçado para não assustar a filha adolescente. Não queria comer, não queria conversar. Embrenhei-me no vício, voltei tarde depois de vagar por bares e bordéis. Vi minha esposa sentada no sofá. Os olhos chorados, olheiras, as mãos em prece. Olhou para mim e me empurrou para o outro sofá. "Onde estava? Fiquei preocupada...", disse ela, "Onde você estava?!". Levantei e esmurrei-lhe a cara. Animal... Ela saiu de casa com a filha no outro dia, depois, silêncio. Ela deixou nossa filha na casa da avó. Matou-se no nosso quarto com veneno. E eu não conseguia dormir e nem comer por dias. Ninguém me olhava nos olhos... Todos sabiam, todos me viam. Passei dias incomunicáveis. Só as árvores me faziam uma companhia saudável. Foi quando eu estava sentando embaixo de uma que vi a ideia, a farmácia e a dor... Hoje sou uma árvore feita de dor. O mundo me nega a partir daquilo que fiz. Sou uma árvore pálida e sem vida, o vento não dança comigo e o sol nega seus raios...
Além de tudo, sou uma árvore morta... Diga-me algo agora que saio do hospital. Vejo minha esposa parada a porta, com o olhar vazio em um misto de dor e felicidade. Vejo os médicos correrem e gritarem para as pobres enfermeiras: "tragam o desfibrilador para o quarto 66!". Sim, era eu em apenas um dia. Em apenas um momento vi as árvores, vi minha vida e vi eu voltar para a praça pela porta da frente. Vi as coisas acontecerem rapidamente que nem dei conta que eu estava morrendo. Há um minuto eu era uma árvore com raízes feitas de plástico. Era apenas um vegetal vagante entre a vida e morte. Apego-me a vida depois da vida como se fosse uma folha que se deixa levar pelo vento frio da madrugada; sinto o sol, agora... Saio do hospital sem notar por onde eu vou. Então, caminho em direção a praça onde as árvores, essas minhas únicas companheiras, dançam ao vento da manhã.
Era apenas um dia, e eu me torno uma árvore ao longe...