UMA MARMELADA QUE DEU ZEBRA

Plácido Bandeira, ao lado de ser um cavalheiro, cidadão muito querido e muito conceituado na sociedade, era um homem muito forte e bem treinado nas artes marciais. Era um verdadeiro atleta.

Íldon Rocha – um trabalhador – igualmente bem quisto e respeitado, jamais freqüentara uma academia. Mas era um homenzarrão que possuía, sem dúvida, uma força descomunal. Dizem até – e isto fica por conta do folclore – que certa vez um burro tentou dar-lhe um coice e ele segurando-lhe a pata, bradara enfurecido: “Você pode ter mais do que eu inteligência, mas força não.”

Íldon Rocha era, normalmente, uma moça no trato, mas zangado era uma fera.

Plácido e Íldon eram amigos e viviam, em Santo Amaro, uma vida pacata e ordeira.

Na década de 40, houve um ano de poucos recursos financeiros na tesouraria de uma daquelas comissões encarregadas dos festejos de determinado Santo idolatrado pela grande maioria da população santo-amarense.Na proximidade do dia comemorativo, a comissão, preocupada, reuniu-se para buscar uma solução, uma maneira de angariar recursos, para não pôr em risco o brilho da festa. Conversa vai, conversa vem, cada um dava a sua idéia; umas pouco brilhantes, eram logo desconsideradas, outras estapafúrdias e inexeqüíveis. Entre estas, no entanto, uma foi considerada passível de análise. A genial idéia foi a seguinte: “Vamos realizar uma luta livre no Cine Teatro Santo Amaro.” Aparentemente nada de estapafúrdio, nem de inexeqüível. Porém o dono da brilhante idéia não tinha, em mente, sequer, os nomes dos lutadores, o que derramou um balde de água fria sobre aqueles que se animaram. Mas outra idéia logo surgiu – a comissão era repleta de luminares – um nome foi aventado – Plácido Bandeira! E todos eufóricos, quase que unânimes exclamaram – Plácido Bandeira! Estava definitivamente, solucionado o problema. E quando já começavam a delinear os planos para a luta, um deles, menos empolgado, dissera calmamente: – quem será o desafiado? Outro balde de água fria, e a comissão retornou às reflexões, até que um dos luminares daquela plêiade lembrou-se do nome do pacato Íldon Rocha, que jamais se imaginara lutando, a menos que lhe dessem um coice.

Apesar de alguns contra argumentarem que seria uma luta desigual, considerando que Plácido era um lutador treinado nas artes marciais e Íldon era apenas uma força bruta, a sugestão foi eleita pela maioria e tratou-se logo de nomear uma subcomissão com a incumbência de levar o convite – ou intimação – aos supostos contendores.

Plácido a princípio relutou por não ter um adversário à sua altura, “ mas se Íldon concordar” –

dissera ele – “faremos apenas uma demonstração, até porque , nós somos bons amigos e Íldon não é um lutador e quando o adversário não tem técnica , quanto maior for, melhor será a queda”. Dissera já em tom de superioridade. Íldon, consciente de que jamais poderia lutar de igual para igual, com um profissional, recusou-se de inicio, ao que ele denominou de uma palhaçada. Entretanto, convencido pela hábil comissão de que a luta seria um faz de conta, uma simples demonstração e que não haveria vencedor, aquiesceu desejando colaborar para uma causa que ele, também, considerara nobre.

A subcomissão, exultante, correra para uma reunião, previamente marcada, onde relatara o êxito de sua incumbência.

O trabalho agora, seria a propagação da grande peleja. No entanto isto foi feito com muita competência e, logo, a cidade se encheu de panfletos e anúncios, o que gerara – pelo inusitado evento – o assunto principal nas esquinas,

nos bares, no Jardim dos Casados, no adro da Igreja, nos lares, enfim, em toda a cidade.

Chegado o dia da grande luta, obviamente que o Cine Teatro Santo Amaro estava repleto, mais do que repleto, superlotado: Pessoas se amontoavam no corredor do centro, nos espaços laterais entre a parede e as cadeiras e ao fundo uma multidão se aglomerava para ver a chegada dos gladiadores na arena.

Ao soar de um pequeno sino - daqueles que, na época, eram usados para anunciar a hora das refeições - trazido por um luminar daquela plêiade, o momento tão esperado aconteceu com a entrada, no ringue, de Plácido Bandeira e , concomitantemente , os aplausos da turba

ávida por sangue. Logo em seguida, a entrada pálida de Íldon Rocha: todo acanhado, totalmente sem jeito, palmas quase nenhuma. Plácido, de braços erguidos, já se sentindo um vitorioso, incitava a multidão a mais aplausos.

Ao novo soar do sino, começara a luta e, à primeira investida, uma queda, uma segunda investida e uma queda maior; e assim, de queda em queda, foram-se incitando a vaidade de Plácido e a fúria de Íldon que, em determinado momento, com o sangue a quase brotar- lhe pelos poros e a boca espumarosa de raiva, num vacilo de seu antagonista, conseguiu abraçar-lhe o pescoço com as suas duas mãos poderosas; e convicto de sua força descomunal, bradara para que toda platéia ouvisse: Saia daqui, agora, filho da puta!

Foi um Deus nos acuda: o juiz – que fora escolhido porque estava acostumado a apitar os clássicos entre Botafogo e Ideal no Campo do Riachuelo – apavorado, vendo Plácido já com a língua um palmo fora da boca, suplicava, de joelhos, o socorro da platéia, que, a muita força, conseguira separar o pescoço do atleta treinado nas artes marciais, das mãos poderosas e enraivecidas da força bruta.

Raymundo de Salles Brasil
Enviado por Raymundo de Salles Brasil em 09/05/2006
Código do texto: T153266