NADINHO
Ele tinha o apelido de Nadinho. O seu nome completo – o de batismo – eu não sei se devo revelar: vou dizer que não lembro, mas que guardo nítida na memória a sua figura e a sua personalidade; simpático, extrovertido, pilhérico e sempre acessível às pândegas da nossa infância que, infelizmente, já vai bem longe.
Ele era um menino quase que indispensável ao nosso grupo de meninos na faixa dos onze aos treze anos de idade. Nas horas das brincadeiras – que eram quase todas – seu jeito irresponsável e irreverente, dava às nossas peraltices um sabor todo especial, já que todos nós tínhamos os nossos medos e os nossos receios, em virtude, talvez, da educação rígida e repressiva, daquela época. Nós sentíamos que havia uma lacuna impreenchível, quando Nadinho não estava presente.
Cheio de um linguajar ora buscado nos clássicos da Crestomatia, ora na gíria do malandro carioca, que ele aprendera não sei onde, mas que usava com tanta propriedade, que até dava a impressão de que fora criado nos morros da Cidade Maravilhosa, tinha sempre uma palavra ou uma frase especial para designar as coisas ou para expressar o seu pensamento. Era, sem dúvidas, uma figura singular entre os adolescentes da nossa época.
Sem preconceitos, brincava com todos e tratava a todos de igual modo: pretos e brancos, pobres ou ricos, que lhe devolviam aquele modo espontâneo de viver e tratar, com afeto e simpatia; e quase sempre nos surpreendíamos contando as coisas engraçadas de Nadinho.
Estávamos quase todos concluindo o quinto ano primário. Naquela época o curso primário ia do primeiro ao quinto ano e ainda passávamos um período inteiro de férias fazendo um curso intensivo, com a finalidade de prestar um exame de admissão ao ginásio, que tinha, talvez – pelo menos na nossa ótica – a mesma conotação dos vestibulares de hoje em dia.
Em plena euforia e perspectiva daquela nova etapa que haveríamos de enfrentar, surgiu um fato inesperado: Nadinho descobrira, ao procurar em mãos dos seus familiares uma certidão do seu registro de nascimento, indispensável ao processo de inscrição para os exames de admissão ao ginásio, que, lamentavelmente, nunca fora registrado, em cartório, o pouso da cegonha, trazendo ao que se sabe, no dia onze de novembro de l93l, aquela, talvez, linda criança (pois toda criança é linda), que haveria de “pintar e bordar” ao longo de toda sua vida. Descoberta a sua inexistência, ele, que era o maior gozador de todos nós, passou a ser o alvo central das nossas brincadeiras , embora estivéssemos preocupados com a possibilidade de – em não se inscrevendo Nadinho para os exames de admissão – perdermos aquele colega que, sem sombra de dúvidas, era o sal de todo o grupo.
As gozações foram tantas, que ele, que era consciente de que brincadeiras se pagam com brincadeiras, já perdendo o seu espírito de malandro, começava a estrilar, sobretudo porque via a proximidade do encerramento das inscrições para os exames, e D. Antônia, secretária indefectível do ginásio, continuava taxativa: sem certidão não tem inscrição.
Nadinho já estava carregando uma tristeza bem visível nos seus olhos, no seu semblante, nos seus gestos quase que dormentes, e nós estávamos mortos de pena dele. Já pensávamos até na grande perda que seria para nós a ausência daquele que era o pivô e o cúmplice de todas as nossas loucuras de adolescentes. Parecia até um pré-velório, tal a nossa tristeza.
De repente Nadinho levanta-se e como se um vulcão explodisse dentro de si, deixa aflorar do âmago da sua personalidade toda força do jovem que não se deixa abater e do malandro que não estrila; e brada: - Vou resolver o meu problema! Sigam-me! E todos nós, sem saber para aonde, fomos, na ânsia de ver solvida uma questão sem precedente na história de nossas vidas e atraídos pelo suspense. E lá estávamos postados defronte do cartório de registro civil, liderados por Nadinho, que mais uma vez, em alto e bom som, bradou: Sigam-me! E portas a dentro seguimos cegos o líder. O escrivão, perplexo com a inusitada visita, pergunta: - A que devo a presença de tão importante comitiva? Ao que Nadinho, enfático, responde: – Vimos registrar no livro grande a eclosão de um lindo rebento, para que o próprio possa prestar exames de admissão ao ginásio.
Risos!
E quem é esse lindo rebento? Pergunta o escrivão.
Nadinho responde: Este que vos fala. Eis aqui comigo as testemunhas.
Mais risos!...
O escrivão, cioso e cônscio do seu ofício, mostrou-lhe o caminho legal para que o seu nascimento fosse assentado no livrão.
E assim, restauraram-se, naquele momento, as esperanças e o nosso cotidiano de alegrias.