A última gaveta

“Valeu Luiz Motta” leu, de novo, a frase escrita num dos cartões de despedida dos companheiros. Parou e ficou ali, olhando a última gaveta que faltava esvaziar. Sentiu algo estranho. Não soube definir o súbito sentimento. Levantou a cabeça e olhou o escritório. Ignorou as pessoas, viu somente a alma daquele ambiente que é seu local de trabalho há 35 anos e que, logo depois daquela gaveta, deixa de ser.

Lembrou-se dos momentos que marcaram. Entre tantos, sorriu quando a memória abriu a tela do tempo com a festa da despedida de solteiro: “Foi em 1979” gargalhou. Baixou lentamente a cabeça quando se viu, de novo, recebendo os abraços de “conte comigo” quando a mãe, dona Celestina, morreu em 82. Depois foram as diversas festas de aniversário, finais de ano e muitas outras que formaram a vida no mesmo lugar e na mesma mesa de mogno. Com quatro gavetas.

Respirou fundo. Sentiu a brisa do ar-condicionado. Sorriu de novo quando lembrou do velho ventilador que sempre “pifava” no verão, “afinal é o Rio de Janeiro” palavras do falecido chefe, seu Marinho.

Em fim, agora estava aposentado. Os filhos criados. A casa comprada. Não restava nada, além de viver com mais liberdade. “Liberdade?” pensou. Passou a mão no rosto. Procurou rugas. Acabou a busca com outra gargalhada.

Voltou a olhar para a gaveta. Viu alguns rascunhos amarrados com elásticos. Desfez o pacote e, neste momento, viu a antiga foto. Três por quatro. Preto e branco. Daquelas com a data na lapela. “Vilma” pensou. Sentiu uma lágrima. Instintivamente, passou uma das mãos no rosto. Pegou a fotografia, colocou no bolso da camisa. Sorriu, fechou a gaveta e... Foi.