O enfermeiro
O enfermeiro entrou no apartamento e logo notou que havia algo estranho. O patrão estava sentado no sofá olhando diretamente para ele com um sorriso flácido boiando nos lábios. Dois homens também estavam sentados, ambos lendo sem interesse revistas de automóveis. O velho, como sempre, permanecia sentado numa cadeira de rodas, expressão vazia, questionando as paredes com olhos sem vida.
- Bom dia, Severino! – O patrão disse levantando-se. O sorriso flácido insistia, como se um derrame o tivesse deformado.
Severino respondeu, estranhando a presença dos homens lendo as revistas. Eram sujeitos volumosos, com aparência de policiais. Talvez fossem seguranças particulares, pois sustentavam no rosto um semblante que parecia dizer estamos-aqui-pra-detonar-não-pra-responder.
- São meus amigos. – o patrão disse quando Severino se demorava em analisar os homens. – Papai esta meio mal-humorado hoje. – Disse apontando para o velho.
De fato parecia estar realmente mal-humorado. Mas e daí? Às vezes Severino tinha a impressão que o velho nem sequer tinha a consciência de estar vivo. Porém aquela manhã havia um quê de sobriedade sondando-lhe a face.
- Sabe, ele não teve dias muito bons. – O patrão emendou, caminhando pela sala. – Foi por isso que contratei você, não é?
Severino não soube o que ele queria com aquela conversa sem destino. Teve um pressentimento ruim. O patrão era um homem deveras rico, dono de uma empresa de publicidade que espalhava palavras em toda São Paulo. Por não ter tempo, alugara um AP para o pai moribundo, e o contratara para assistir-lhe. O patrão amava seu pai, mesmo com os gastos em fraudas, condomínio, enfermeiro...
- Há quanto tempo ele não fala? – O patrão perguntou a ninguém em especial. – Dois? Três anos?
Severino desconfiava ser mais tempo. O velho perdera toda a capacidade da fala e de controle. Cagava-se e mijava-se o tempo todo. Babava ao lhe darem comida. Às vezes chorava com a cabeça pendendo para a direita. Era uma agonia que recusava-se a terminar. Noventa e Cinco anos não são para qualquer um. Severino ouvira histórias do seu passado. Sujeito que nasceu pobre e viveu pobre por toda a vida, mas teve a sorte de um filho ficar rico. E mais sorte ainda de um filho ficar rico e se preocupar com ele. A maioria dos filhos ricos esquecem que ficaram por muito tempo alojados num saco escrotal, esperando a oportunidade de infiltrarem-se num óvulo materno. E que custaram muito sacrifício, com seus choros noturnos, cagadas e nojentisses a parte.
- Você sabe o que meu pai falaria para você agora se ele pudesse? – o patrão perguntou.
Severino maneou a cabeça numa negativa.
O patrão ligou a TV e disse:
- Ele pediria para você assistir esse vídeo. É muito engraçado.
Nesse momento os dois homens grandes levantaram-se. Eram mais fortes em pé que sentados. Assumiram uma posição de segurança de porta de boate. Pernas afastadas, mãos grudadas na frente da cintura.
O patrão apertou o play no controle remoto.
Na tela da televisão surgiu a imagem de um quarto. Um velho sentado numa cadeira de rodas. Imagem de câmera caseira, daquelas antigas, que usamos para registrar casamentos e festas de aniversário. Um homem entra em cena, de costas para a filmagem.
Com perplexidade, Severino notou ser ele próprio na filmagem. Perplexidade e horror, pois sabia o que viria a seguir.
O homem da filmagem retira o velho da cadeira de rodas com brutalidade e arremessa-o na cama, como um boneco qualquer. Fala obscenidades e dá alguns bofetões na face do velho. Um soco logo em seguida, não muito forte, mas o suficiente para o corpo do ancião tremer todo. O homem da filmagem sai de cena por alguns minutos; cinco minutos especificamente. Ao voltar, traz consigo um prato com mingau, a única coisa que o velho come com sua boca sem dentes. O homem da filmagem dá a comida como um pedreiro jogando cimento na parede. O velho fica todo sujo. O homem xinga-o de filho da puta e empurra-o. O idoso bate com a cabeça na armação da cama e solta um gemido. O gemido parece irritar o homem, fazendo-o bater a cabeça do velho com mais força na parede. Um calo bem visível nasce para o mundo, emergindo de uma cabeça sem cabelos de pele mole. Mais tarde ele diria ao patrão que o velho escorregara de suas mãos e batera com a cabeça na parede. O pior vem em seguida. O homem retira a frauda do idoso e ao notar que esta repleta de urina, esfrega-a no rosto do pobre velho.
O vídeo termina com a saída do homem de cena. Ele não reaparece por várias horas. O velho defeca e urina na cama. As mãos erguidas na altura do peito, tremendo. O pobre fim de um homem.
Ao acabar o filme, o enfermeiro tem a sensação óbvia de estar diante da sua morte. Homens como o seu chefe não são dados a perdão. Homens como o seu chefe gostam de vingança. Pois o dinheiro ensinou os homens como o seu patrão que nada os pode afetar.
- Eu, meus amigos e papai vamos tomar um café da manhã ali embaixo. – O patrão disse ainda com aquele sorriso hediondo. – Você ficará aqui. Você tem uma escolha muito importante pra fazer.
Severino temeu. Quis se ajoelhar, pedir perdão, mas achou que se fizesse isso o patrão romperia as barreiras de calma edificadas em torno do ódio que o fritava por dentro. Apenas escutou incapaz de olhar qualquer um presente na sala.
- O nosso café da manhã durará aproximadamente uma hora. – Continuou o patrão, parecendo saborear as palavras. – Nessa uma hora, você vai olhar aquela janela ali. – apontou para a janela que apresentava um pedaço de São Paulo, toda a natureza urbana resplandecendo sob um céu de cobre. – e decidir entre pular e ficar. Porém, se ao chegarmos aqui e você não tiver pulado, dou passe livre para os meus amiguinhos brincarem com você.
Os amiguinhos sorriram. Belos cães de guarda. Se você prestasse atenção quase poderia ouvi-los rosnar. Falando isso todos saíram de cena, um dos amiguinhos empurrando a cadeira de roda como um carrinho de supermercado. No apartamento só ficou Severino e suas culpas.
Culpas pesadas.
Severino desabou no sofá incapaz de se manter em pé. As pernas tremiam. Os braços tremiam. Tudo tremia, ele parecia um homem acometido de um ataque epilético suave. De repente o suor que maculava suas axilas ficou gélido, mas o corpo ardia sob as roupas de enfermeiro. Principalmente a cabeça, onde borbulhava um cérebro ocupado. O rosto queimava de vergonha e arrependimento. Sentia necessidade de punir-se.
Permaneceu muito tempo olhando para nada em particular. O corpo pendendo para frente, cabeça apoiada nas mãos fechadas. Respiração entrecortada. Evitava olhar para a janela. Em determinado momento tentara usar o telefone. Ligação cortada, obviamente. Gritara diante da porta trancada, mas aquele prédio fora construído com um apartamento por andar, cada com um sistema de abafamento de ruídos. Ou seja, poderia gritar a vontade que ninguém iria escutar.
E se gritasse da janela?
Não achou uma boa idéia. O patrão provavelmente ouviria a subiria apressado para brincar com suas bolas.
Nesse tempo sua mente procurava respostas pelos atos que perpetrara com o velho. Violência desnecessária. Intolerância. O que o levara aquilo? Não tinha problemas pessoais graves. Não havia sido espancado na infância. Era um bom sujeito, diziam seus amigos. Não bebia excessivamente. O que o velho fez para si?
Nada.
Severino corou mais ainda quando uma parte da sua mente respondeu a pergunta: porque era divertido. Sim, muito divertido. Ver o velho tremendo. Escutar os gemidos engraçados quando ele era surrado. Sentir a pele flácida e sem vida sendo esmagada.
Severino levantou-se angustiado de súbito. O desespero ganhava velocidade. Girou, observando os detalhes da sala luxuosa. As paredes pareciam se fechar. Quente. Estava quente demais. O oxigênio recusava-se a entrar por suas narinas. Olhou para o relógio. Quarenta minutos que a tropa deixara o apartamento. Mais vinte minutos e estaria acabado. Quantos metros até a Avenida? A mente explodia em cálculos matemáticos sobre altura, peso do corpo, velocidade. Gostava de matemática. Mas no momento ela não apresentava sentido algum. Olhou novamente para o relógio. Cinqüenta minutos. Tinha dez de sobra. Precisava acalmar-se. Andou de um lado para outro, como um cão a procura do próprio rabo. Vergonha de si. Como o ser humano é capaz de certos atos?
Um elevador abriu-se fora do apartamento. Severino girou o pescoço fugazmente, fazendo-o estralar. Jesus, Maria e José, o carpinteiro! Passos pela alfombra do corredor. Vozes meio alegres. Como podiam estar alegres? Bem próximo agora, a menos de dois metros da porta de entrada. Severino olhou para a janela, depois para a porta e assim ficou como se estivesse assistindo uma partida de tênis. Janela, porta, porta, janela. O som das rodas enferrujadas da cadeira de rodas. Menos de um metro da porta. Severino conjecturou que eles estavam fazendo tais barulhos de propósito, para deixar-lo louco.
Seria o seu patrão capaz de assassiná-lo? Não tinha vontade de descobrir.
Som de chaves tilintando na fechadura. Severino gemeu de desespero.
- Vamos descobrir a escolha do nosso querido Severino. – A voz do patrão antes de entrar.
Severino correu para a janela e olhou para trás. Divisou o patrão na entrada do AP, observando-o com olhos frígidos. Não havia nenhum resquício de sorriso nos lábios dessa vez, eles eram apenas um risco tênue sob o nariz.
- Sábia escolha. – Murmura o patrão.
Severino pula e ainda tem tempo de sussurrar o primeiro verso do Pai nosso, antes da sua cabeça explodir na calçada Copacabana da Avenida.