INAUGURAÇÃO
“Não me arrependo, ele mereceu morrer, pois a culpa foi somente dele.”
Essa foi a declaração da dona Anette ao ser presa, pelo menos o final dele, mas os fatos também falavam por si. Tudo foi planejado e executado com certa frieza, mas o motivo, a esse cabe uma pergunta, até que ponto alguém é realmente culpado pelo que acontece aos outros?
Vinte e um de Maio , dona Anette levanta-se ás quatro e vinte da madrugada, esse sacrifício é necessário para não chegar tarde ao trabalho, ela entra ás oito, mas existem outros afazeres antes de sair, o café dos dois filhos para irem ao trabalho, leite café e dois pães com manteiga na frigideira, passar a roupas de todos para o dia, seu uniforme está entre elas e o que ela entende como o mais importante, a marmita do seu marido Jorge, um mecânico que tem sua oficina ali perto. Eles moram em um bairro distante, os filhos levam em média duas horas, e várias trocas de ônibus, para chegarem ao trabalho, ao passo que dona Anette consome quase três horas do seu tempo para ir ao seu destino. Quando conseguiu este emprego ficou feliz por poder conseguir completar a renda da família, pois os rendimentos do marido não eram constantemente certos e os meninos ainda não trabalhavam, o tempo de viagem a incomodou no inicio, mas com o passar do tempo ela ajustou sua rotina a este sacrifício. Seu passatempo dentro do ônibus era o crochê, vantagem a parte, ela pegava uma única condução de ponto final a ponto final, eram metros e metros de linha e milhares de voltas na agulha e várias viagens depois nascia uma toalhinha nova, não existia casamento, aniversário ou batizado que não recebia uma de presente.
Ao chegar ao seu destino, entrava sempre com antecedência no trabalho, colocava seu uniforme impecável e ia direto para a copa da engenharia da empresa de trens da cidade, preparava o café, que podia ser o pó de pior qualidade mas sempre dava um jeito de ficar gostoso, depositava nas garrafas térmicas e colocava no carrinho e saia para distribuir entre os escritórios. Era muito querida pelos funcionários, não existia um que não desejasse seu bem, ou que não tenha recebido uma toalha de crochê . Todos conheciam seu sacrifício para estar todos os dias na empresa, principalmente o seu Júlio gerente de desenvolvimento de novas estações, dona Anette o tratava com carinho e ele retribuía, sempre dizia a ela que um dia existiria uma estação perto de sua casa e que ela poderia descansar um pouco mais, pois sua volta para casa era outro martírio , principalmente em dia de chuva, mas não se podia fazer nada contra a vontade divina. Ela agradecia a preocupação e a promessa do seu Júlio dizendo que no dia que ocorresse a inauguração ele receberia um belo presente, provavelmente mais um crochê.
Os dias passaram, viraram meses e quando completavam quatro anos dona Anette ao chegar ao trabalho recebeu a noticia de que retornaria para casa em um trem novinho, fazendo o percurso até seu bairro em trinta minutos e parando em uma estação a poucos quarterões da sua casa. Ela nunca esperara tanto a hora da saída como naquele dia vinte um de Maio. Trocou-se rapidamente e saiu em direção a estação para pegar o trem, no caminho planejou várias coisas, preparar um jantar melhor para o marido, que desta vez chegaria depois dela, com direito a bolo de fubá de sobremesa, começar a assistir a novela das seis da qual as meninas tanto falavam e terminar, sentada confortavelmente no sofá da sua sala, a toalha de crochê do seu Júlio. Muito feliz ela embarca no trem e se espanta ao sentir o vento friozinho do ar-condicionado e ao ouvir musica de elevador, após treze estações chega ao seu destino, desce do trem, sobe as escadas rolantes e contente comenta com um funcionário perto da saída que está muito feliz pois antes levava até três horas para chegar em casa e naquele dia levou vinte e cinco minutos, o funcionário agradece e sorri.
Dona Anette cruza os dois quarterões que separam a estação da sua casa, abre o portão e estranha encontrar a porta destrancada, entra silenciosamente na sala e escuta alguns ruídos vindos do seu quarto ela espia pela a porta semi-aberta e vê a cena que a levaria para o desfecho relatado no inicio . Seu marido, o mecânico, o homem de quem ela cuidava, aquele que ela pensava chegaria depois dela naquele dia, estava na cama com sua vizinha . Sua reação foi estranha, ela abriu a porta e ficou parada sobre o batente encarando os dois adúlteros, eles não esboçaram nenhuma reação a mais além do susto, totalmente atrapalhados começaram a se vestir, a vizinha assim que se recompôs olhou para Jorge e como se pedisse permissão cruzou rapidamente o olhar com Anette, esta com o rosto indiferente deslocou o corpo dando passagem para a vizinha que não pensou muito e passou pela porta. Anette ao ouvir o bater da porta da frente, desviou sua atenção para o marido, este já sabia o que viria então juntou algumas coisas e ao passar por ela disse que iria dormir na oficina. Ela sentia um ódio sufocante, a traição não era algo que sequer imaginara, todas as promessas feitas foram apagadas, seus carinhos e sua dedicação haviam sido renegados, anos de sacrifício foram jogados fora. Seus filhos iriam chegar e perguntar o que aconteceu, ela diria tudo mas deixaria de contar que sua vingança estava sendo encaminhada, o culpado pelo seu sofrimento não ficaria impune, mas não faria nada de imediato.
No dia seguinte dona Anette saiu de casa um pouco mais tarde, o rosto cansado e os olhos tristes, caminhou até a estação, entrou, foi saudada pelo funcionário mas o ignorou, desceu as escadas e embarcou no trem onde teve mais uma decepção, por algum motivo o mesmo estava rodando em marcha reduzida e pela primeira vez na sua vida chegou atrasada ao trabalho. Entrou correndo no vestiário, vestiu o uniforme amarrotado e partiu para a copa onde fez um café sem muito comprometimento, neste dia os empregados do setor exigiram a troca da marca do pó de café, como última tarefa levou um lanche para o seu Júlio que notou a mudança no humor da dona Anette, indagada ela disse que eram problemas com o marido mas que logo tudo estaria resolvido. O dia todo foi assim até a volta pra casa onde chegou mais cedo e viu que os homens haviam feito uma bagunça na cozinha pois ela não deixou nada preparado. Jorge já criara coragem e voltou para casa, mas decidiu ficar acomodado no quarto dos meninos, que mesmo sabendo da safadeza do pai aceitaram dar refugio a ele no colchonete entre as camas. Os dias passaram e ela começou a retomar a rotina da casa, café da manhã para os filhos, roupa passada e até uma marmita para o Jorge, que desconfiado deixou intocada. No serviço tudo corria normalmente, o café havia melhorado, ela até entrou na conversa sobre a novela das seis, todos no escritório notaram a melhora no humor da dona Anette, mesmo seu Júlio, que andava tão ocupado, achou um tempo para agrada-la. Duas semanas e já estava na hora de colocar sua vingança em pratica, ninguém mais desconfiava de nada, todos agiam com naturalidade até o Jorge estava almoçando sua marmita, tudo estava pronto, amanhã na hora da refeição ele pagaria pelo que fez. Sua mãe e suas tias a ensinaram os afazeres da casa, mas também lhe transmitiram alguns segredos sobre ervas, que nunca pensou que seria necessário usar. Na noite anterior ela chamou Jorge para a cama, seria a última noite que passariam juntos, pois no dia seguinte estariam separados.
Mais um dia mais café da manhã, mais roupa passada, a última marmita do Jorge e o último crochê pro seu Júlio. Ela vai pra estação, compra o bilhete, saúda o funcionário alegremente, que realmente estranha tal atitude, embarca e enquanto esta sentada perto da janela, comete o primeiro ato de vandalismo daquele trem, com a ponta da agulha de crochê escreve uma palavra obscena que transmite a realidade de sua alegria pela vingança em andamento. No trabalho tudo voltou a normal, o café excepcional com um leve sabor amargo, a conversa com as amigas sobre o final da novela, no qual dona Anette acha que a mocinha deveria ter fugido com o irmão do mocinho e leva o lanche do seu Júlio, acompanhado de uma manta de crochê e pedindo para nunca esquece-la, ele agradece estranhando o tom solene mas deixa passar. O resto do trabalho correu como esperado, ás cinco da tarde ela sai e embarca para casa, mais uma vez os trens estão em marcha reduzida e o tempo de ida triplica. Dona Anette sabe que suas ervas já fizeram efeito e sabe também que já a devem estar esperando em sua casa para prende-la. Mas não existe arrependimento, ela nunca será atacada pelo remorso, sua fidelidade, seu carinho, sua dedicação e sua ternura haviam sido pagos com o ato de tira-la a única coisa que importava, sua ilusão de uma vida feliz.
Ela estava enganada sobre ser presa em casa, os agentes de segurança e os policiais já a estavam esperando na estação, a abordaram e deram ordem de prisão. Dona Anette foi algemada sem muita cerimonia, os usuários ficaram surpresos pensando que fosse alguma ladra. Levada para delegacia ela não escondeu nada dos fatos, relatando tudo e terminando dizendo:
“Não me arrependo, ele mereceu morrer, pois a culpa foi somente dele.”
O Delegado terminou pedindo ao escrivão que terminasse o depoimento escrevendo que a Sra. Anette Barbosa Silva assumiu a culpa pelo assassinato do Sr. Júlio Correa Mesquita, Gerente de Desenvolvimento.
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