Pânico Depressivo
Nada naquela tarde parecia animar Fernando. Em frente à televisão, sentado no sofá azul de três lugares, até o controle remoto parecia-lhe tedioso. Objeto, contudo, tratado como melhor amigo horas atrás.
Estava inquieto entre deitar-se e sentar-se; ligar ou desligar o eletrodoméstico; assistir ou apenas escutar a programação. O motivo de tamanha confusão, certamente, era pela ânsia de mais um comprimido.
Nos últimos dois dias tomara quatro, e não três como seu médico indicara, anti-depressivos ao longo do dia. Naquela hora, no relógio eletrônico de dígitos verdes e posicionado na parte superior da estante, via-se “14:35”. Nesse móvel, acima da televisão e ao lado do relógio, ainda tinha um porta retrato com uma foto de Peninha - apelido dado por sua mãe, fruto de sua paixão infantil por pássaros - ainda criança. A imagem trazia um garotinho magro e jovial.
Fernando ainda é um jovem de 19 anos, embora aparente quase uma década a mais de vida. Gordo da cabeça aos pés, ostentando quase 120 kg, nem seus olhos azuis parece escapar do triste veredicto que sua adolescência carregada de traumas proporcionara-lhe, perdendo o brilho e encanto em que podia notar-se na foto. Sentia-se um lixo. Não conseguia socializar-se desde que finalizara a escola, há quase um ano.
Após voltar de um pensamento em que fitara a mesa de jantar, ininterruptamente, por cerca de um minuto, ele se levantou e foi até a geladeira. Apanhou uma garrafa de Coca-Cola de 600ml e meia barra de Suflair. Deixou tudo em cima da mesa de jantar e foi em direção ao banheiro.
Chegando lá, abriu a portinha branca do armário, que esbanjava uma misteriosa faixa de super-relevo marrom detalhando intrinsecamente o local que ficava em baixo da pia que alias, era verde escuro, cena apta a chamar atenção de um possível observador. Buscou uma caixinha preta, daquelas de guardar filmes fotográficos – se é que isso ainda existe. Pegou um comprimido com coloração azulada, de um tom claro e suave. Conferiu com o olhar a quantidade restante. Devolveu a caixinha para seu lugar de origem, voltando rapidamente para a sala ao encontro da garrafa e do chocolate.
Destacou e engoliu um pedaço da barra junto ao comprimido, com ajuda de um gole de coca. Voltou para seu sofá e para o transe de sua imaginação, que é bastante confusa e afoita, mas que com a ajuda do doce, do refrigerante e, principalmente, do comprimido, o quinto do dia, haveria de fluir com mais tranqüilidade a partir dali.
No mínimo, esse era o seu desejo. Dia após dia ele vivia trancafiado em casa, sem muito convívio íntimo com sua mãe, já que ela passava o dia trabalhando, e na esperança de que seus remédios amenizassem a dor do vazio que ele cultiva há anos.
Após comer toda a barra e beber o refrigerante, Fernando abraçou-se a garrafa, esticando-se e partindo para um cochilo, quase que sem consciência do que fazia.
Tempos depois...
Acorda! Percebe-se com a garrafa. Atira ela ao chão. E, então, um pouco mais calmo, mas ainda com uma respiração carregada e ofegante, ele passa a observá-la. Lembra-se, subitamente, da noite passada, quando Dna Iracema, baixinha e magrinha, chegara dizendo ao filho que havia ganhado dois ingressos para o show da banda NX0.
Sua face ganhou ares de motivação e era óbvio que surgira repentinamente, uma de suas raras e curiosas histórias fantasiosas. Levantou-se, andou de um lado para o outro e partiu a procura de algo.
Encontrou o envelope em cima da mesa misturado a algumas revistas Veja e Ti-ti-ti, além das contas. Pegou os ingressos e conferiu o horário do show. Foi pegar a garrafa pet. Tirou o rótulo Coca-Cola. Fez um rolo com um dos ingressos e jogou dentro do recipiente que ainda ostentava gotículas do líquido negro.
Foi ao seu quarto, com desastrosa ansiedade, e conferiu que como de costume, Pedro Henrique – seu vizinho 11 anos mais velho e 50kg mais leve – estava em seus “escritório” digitando em seu belíssimo teclado escuro. As janelas não eram muito distantes, portanto, a privacidade não era das maiores. Entretanto, eles pareciam não se importar, afinal, aquela cena poderia se repetir quase todos os dias e há alguns anos. Apesar disso, porém, não conversavam regularmente.
Morando sozinho, Pedro sentia-se mais à vontade para exercer sua profissão de escritor. Assim, passava a maior parte do dia em casa trabalhando e aproveitava as noites para beber, se divertir, conversar e claro: conhecer e viver com seus personagens, fantasiando histórias e vivendo a vida.
Com o calor - que estava a fritar miolos - daqueles dias, PH mantinha a janela sempre aberta. Só percebeu, no entanto, a presença do vizinho observando-o ao escutar uma garrafa pet de 600ml com tampa vermelha, aquela mesma do líquido escuro, atingir o chão de seu ambiente de trabalho. Ao notar um papel dentro da garrafa, ignorou o adolescente e foi ver o que era. Com dificuldade tirou o papel um pouco úmido da garrafa. Ao desdobrá-lo e ver que se tratava de um ingresso para o show do NX ZERO que seria naquele mesmo dia, surpreendeu-se.
Soltara uma gargalhada, sem percebê-la, por não gostar do gênero e/ou pela atipicidade da situação. Mas logo em seguida, silenciou-se e pensou no que acabara de acontecer. Percebera aquilo como um convite e voltou-se para o garoto dizendo com um ânimo incomum às conversas anteriores:
-É hoje, né?
Surpreso pelo tom do vizinho, Fernando respondeu:
-É sim.... Você gosta?
- Não conheço muito. Mas sempre é bom conhecer coisas novas, você não acha?
O ânimo dele encorajou o sempre fechado adolescente:
- Não. Eu não concordo. Coisas novas só trazem alegrias momentâneas. Logo passam e você ainda tem mais uma lembrança para lamentar-se. Oh! Oh! Nada disso deve fazer sentido pra você, não é mesmo escritor? Sempre fantasiando vidas alheias.
A sinceridade dessas ditas palavras foi recebida com grande apresso por Pedro. Há muito tempo não ouvira as verdadeiras idéias de Fernando. Henrique sabia muito bem quando seu vizinho prestava atenção em seus diálogos ou quando estava apenas queimando seu tempo, dizendo coisas sem nexo.
- É o meu trabalho garoto. Viver coisas novas! Imaginar as novidades! Você deveria alegrar-se com as lembranças, ao invés de transformá-las em martírio.
- Talvez – interrompeu-se, permitindo-se pensar por alguns segundos e continuou com uma voz inicialmente trêmula: mas nunca tive motivos! Vivo dias tão quentes que você nem imagina. Digo pela temperatura da minha cabeça. É como se... – silencia-se novamente,... ... ..., recomeça com um novo tom: é como se a minha vida fosse feita sem tempero e esse fosse o meu destino.
Assustado com a complexidade da resposta, Pedro perguntou:
- Você já escutou música?
- Música? Qual música?
- Qualquer uma, de qual se lembra?
- Ah, não sei o nome!
- Cante um pedaço então.
- Não sei cantar.
- Ah, pára. Cantarole, diga o refrão... qualquer coisa!
Disse ele tentando motivar Fernando.
O silêncio voltou a reinar. A expressão do mais jovem era como se tivesse tentando lembrar de algo. Do outro era de pura ansiedade. Ambos não conseguiam deixar de demonstrar seus sentimentos.
- Tan, tan naran naran na, Tan naran naran na, na, na,. (Som da vinheta brasileira para a F1)
Fernando começou a cantarolar com muito entusiasmo o ritmo.
- É linda, não é? A música trás sensações! Cara tente lembrar de outras! Posso te emprestar um cd?
- De músicas?
- É!
Levantou-se animado e foi até sua estante de cds. Olhou por alguns segundos e pegou The Dark Side of The Moon do Pink Floyd.
- Se eu jogar você pega?
- Sim
- Tem certeza?
- Anham.
- Mas tem que escutar bem alto, prometo que não vou reclamar como faria um vizinho chato, e tem que ser da primeira a última música!
- Agora?
- Você tem alguma coisa pra fazer?
- Pode ser então – convencido, Fernando concordara.
O amante de Rock’n Roll fingiu que arremessaria a capa duas vezes, provocando risadas no agora mais descontraído jovem. Na terceira vez, por ironia, Fernando não se atentou tanto e acabou não conseguindo agarrar o cd, deixando-o cair no chão de seu quarto. Instantaneamente, a expressão de Pedro mudou e ele deixou escapar um grito:
- Não!
Não gostaria, todavia, de brigar com Fernando, ainda mais agora que estavam tão próximos. Então, emendou outro assunto antes que seu quase indecifrável vizinho ficasse sem graça.
- Não dá nada não, nem preocupa! Você não consegue outro ingresso?
- Sim, alias, não sei cara – hesitando ao curioso ânimo de Pedro, ele continuou: Tenho que ver com minha mãe.
- Ela vai demorar? Se você conseguisse podíamos ir juntos.
- Eu vou escutar o cd, depois vejo com ela. Você sempre está por aqui mesmo, eu te digo.
- Ok!
Fernando, interessado naquele presente que recebera, afinal, fazia tempo que não ganhava algo, fechou a janela e foi em direção ao som de seu quarto. Enquanto Pedro brincava com a garrafinha e observava seu pôster com uma figura de uma ave sobrevoando a cidade de São Paulo, pensava em como o mundo poderia ser mais colorido e alegre, e em como as escolhas de cada ser humano são tão fortes e carregadas de energia.