Nasceste por fim
Este conto foi escrito na altura em que nasceu a minha primeira sobrinha há já alguns anos. Desde que soube que ela ia nascer que me ocorreu tanta coisa...Até ser pai, ela e a irmã vão ser a coisa mais próxima que irei ter de um filho ou filha são elas; quando nasceu a segunda, "já estava habituado" à presença de "uma herdeira", mas a quando do nascimento da primeira não...Tentem imaginar o meu estado de espírito...Tantas coisas que lhe queria dizer, tantos mundos que lhe queria mostrar e por ai fora...Ainda não sabe ler, mas quando souber irei dar-lhe estas e outras linhas que vou escrevendo para elas, porque acima de tudo as palavras são o meu legado, independentemente do tempo que viva ou da obra que construa. E estas foram as primeiras palavras que escrevi para ela, tendo acima de tudo um valor sentimental, quase espiritual.
Nasceste por fim
Mas com isso, nesse acto imensamente feliz para aqueles que te rodeavam ou apenas esperavam, assinaste um pouco da minha sentença de morte, apesar de ser daqueles que te amavam muito antes de ser adivinhada a tua concepção. E se toco nesta fria palavra de cinco letras é com um sentido algo filosófico: assistirás a muitos dias ( provavelmente os teus melhores) que para mim serão um futuro distante, só tomando conhecimento (se...)quando vieres ao meu túmulo contares-mos. Na tua vida o homem irá chegar a Marte, e na tua velhice certamente lá terá uma base mais ou menos definitiva. Os teus netos ou bisnetos serão imunizados a múltiplas doenças antes sequer de nascerem, e terão o aspecto que tu e os médicos entenderem se os escrúpulos de hoje não forem os mesmos de amanhã, ou se a ética for apenas mais um conceito elástico a repousar a sua génese em livros há muito esquecidos. Mais depressa abrirás um computador do que um livro, achando estes engraçados pelo seu classicismo mas enfadonhos pela forma arcaica como tem armazenada a informação...E tantas coisas mais, tantas inovações que para ti serão banais mas que para mim serão esse tal futuro que admiro, mas no qual nunca chegarei a viver.
Muito antes de nasceres escrevi algures que “depois de criar tantos futuros é injusto morrer no presente”(isto depois de ter escrito algumas dezenas de contos de ficção cientifica que ninguém quis publicar). Pedi para esta frase ser escrita no meu túmulo e não há um dia que passe em que não me lembre dela, apesar de desejar ser distante a altura dela ganhar o mármore mais ou menos eterno. Mas de certa forma isso não me preocupa demasiadamente, porque o que me interessa verdadeiramente será poder conhecer-te melhor, saber se vais estar à altura dos teus progenitores, dos progenitores deles e por ai fora...Interessa saber como encararás a vida, como vencerás os seus obstáculos, ser herdarás as minhas fragilidades, tão detestadas como temidas, ou se serás mais forte e por isso mais feliz. Claro que te irei acompanhar a infância, a adolescência e até uma parte do mundo adulto, mas francamente, gostava de ir mais longe, de ir contigo até à tua velhice, gostava de ir amar os teus filhos e netos, de os ver triunfar naquilo que alguém chamou um dia de “puta da vida”.
E no entanto, apesar de estar talvez no auge da minha vida, de facto o teu nascimento foi (muito mais do que os cabelos brancos que já começam a despontar desafiando a sobremacia incontestável dos castanhos escuros) o primeiro gesto numa futura velhice, o meu primeiro passo em direcção ao ocaso existencial.
Mas... de certa forma afinal tal dramatismo afinal não passe disso, de dramatismo excessivo por algo tão natural como é o começar a envelhecer: o meu avô materno já morreu há alguns longos anos, mas ainda hoje mantenho o hábito irregular de ir à sua campa contar-lhe as novidades, ou de pelo menos pensar nele, nos conselhos e amizade que me daria nos bons e maus momentos e, sobretudo, penso no seu sorriso imenso que inundava alegremente os espaços onde estava, pensar nele e lhe dedicar algumas ( e penso que saborosas) linhas de memórias onde o revejo com tal intensidade que quase o sinto vivo. E penso...Se te conseguir incutir uma centelha desse amor serei um homem feliz e esse futuro que nunca chegarei a viver (um futuro ausente, como lhe chamo na intimidade da escrita) não me importará por ai além, pois sei que serás alguém honrado, sei que vingaras nos projectos a que te propuseres, não procurando a via facilitarista, mas sim a mais honesta, a mais tua, e sonho com a hipótese de me vires narrar, nem que seja mentalmente, os teus sucessos ou que me procurarás na altura das dores na tua memória, procurarás este tio porque na altura em que era vivo sempre constituiu para ti um porto de abrigo secundário a seguir ao teu pai, e se isso acontecer, lá onde estarei estarei de consciência tranquila e o dever cumprido, por te ter sido útil, por ter sido alguém honrado no tempo magnifico que passei no mundo dos vivos.
Nasceste por fim
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