Lamento sertanejo

“...o homem cansado não se rende, a

sua esperança é a última que morre!”

Esse sol escaldante apavorando a cada instante, tantas criaturas desfalecendo aos poucos, esse sertão que mata e apavora, que mal cria, que deixa sem aspecto de vida, que me deixa com esperança... Com desesperança... Com cara de morte, que me engole e também aos que tanto amo. Se soubesse que também já me dediquei por ele com minha própria vida... Ainda estou em dúvida se ainda o quero... Mas esses meus que aqui estão não merecem essa vida; nem tão pelo fato de nascerem neste sertão que dizem ter vida. Se alguém puder considerar tudo isso cá ser vida – digo vida vivida.

Meus pés de Mandacaru já não têm forças nem mesmo contra o vento, caem ao simples resvalo das vacas. Coitada da mimosa, por mais que se esforce não consegue mais mugir. Para não falar dessas minhas sobras de cabras sedentas de água, que não se suportam mais em pé. O meu cachorro - que a mulher colocou o nome de campeiro - quem poderia dizer que um dia realmente ele foi campeiro? Agora procura não sei lá o que entre as raízes das árvores. Morde, cava, uiva, procurando com certeza água na batata do Umbuzeiro; acho que foi por isso que perdeu aos poucos os dentes que ainda tinha na boca. De longe se visualizam em seu dorso os ossos expostos, é só pele e osso cadavérico. Oh! Dó! Arrasta-se pelo chão tal qual uma víbora. Víbora que na sinuosidade de seu rastejar procura sem fim sua presa. Vil áspide que está cada vez mais escassa neste sertão. Cobra tão desejada nos pratos nestes léus que apavora... Pobre serpente que de caçadora vira a ser caçada, pela fome, pela miséria, pela barriga que dói... Ali a sua pele esticada contorcendo no solo árido, procurando ela um refúgio n'algum arbusto ou cupinzeiro seco e castigado pelo sol causticante. E eu procuro não sei o que neste Seridó sem dono. Sem vida. Sem destino certo.

E para dar mais desgraça nas coisas, semana passada minha mulher veio dizer que sua regra está atrasada. Coitada, acho que não segura mais filho na barriga de tão desnutrida que tá! Ano passado perdeu mais um filho em vida! A parteira deu notícia que Zezinho já nasceu com o verme do bicho caramujo. Acho que foi por causa da parceira, com sede bebeu água de poça que secou lá do que era do brejo debaixo. Verme desse sertão que não tem dó! Deu pena do pequenino; nasceu com barriga d’água. O curandeiro falou que já não tinha jeito e o sertão iria se encarregar do seu destino. Morreu sequinho com água na barriga; tinha mais água na barriga dele do que no barreiro que secou. Virou terra rachada aos poucos de tanto garimparmos água com a cacimba em seu leito. Ah! Essa dor de pai que vê o filho morrer sem nada poder fazer... Ele foi enterrado ao lado do pé de Jurema, bem perto daqui do meu rancho feito de barro e coberto com gravetos secos. Pedi pra mulher tomar erva brava do mato pra jogar fora da barriga o filho que estava esperando. Nasceu com vida, mas morreu... Já não tinha mais a quem me apegar; aos meus santos, aos meus deuses...

O último morador já foi embora daqui há muitos janeiros atrás. Meu filho maior, coitado! Armou uma arapuca para pegar uma arisca juriti, está numa briga danada com ela! Tenho até dó da infeliz da perdida; lutando pela sobrevivência igual o sertanejo... A asa branca, ah! Essa asa branca que canta de manhã cedo no pé de xiquexique seco que um dia teve vida (mas isso foi há muitos anos atrás). Ela estufa o peito e gorjeia uma melodia triste, parece que está cansada de toda essa seca; se parece comigo, não tem coragem de ir embora, ou melhor, não tem pra onde ir não.

...Chegou noticia do compadre que foi lá pro Sul, pra cidade grande. Ele sempre teve olhos pro futuro, quando viu que a coisa aqui estava feia, pegou toda a sua família e foi embora daqui. Orgulho-me muito dele. O compadre disse que lá é lugar de se viver. Lugar pra criar os filhos. Quando recebi a notícia fiquei entusiasmado e mandei a mulher arrumar as trouxas pra gente também sair daqui. Resolvi vender a vaca mimosa e as poucas cabras que ainda restavam em pé. Quase vendi por uma ninharia e estava resolvido ir sair daqui. Talvez aquela fosse minha última noite neste sertão que mata, corroí, arde. Olhava pr'aquele luar que tantas vezes me inspirava esperança – isso é, se sertanejo inspira esperança – O céu queria dizer alguma coisa, as estrelas brilhavam pra mim como que indicando um caminho... como que querendo dizer: – “Espera mais um pouco, amanhã é um novo dia!”.

Fiquei naquele negrume olhando pro céu... lágrimas corriam pelo meu rosto contemplando, imaginado, sonhando, pedindo. Deitado na cama de pau-a-pique, antes de dormir fiz mais uma prece. Preces incansáveis. Várias preces.

...Amanheceu um novo dia... Mais um dia de esperança, pois o sertanejo só vive disso, de esperança. Esperança de chuva, de água e apenas se encontra aridez, uma herança seca... Não consegui forças para sair dali não. A coruja mortalha rasgou estridente à noite inteira várias vezes no esteio da casa. O cachorro campeiro uivou à noite sem fim... Dizem que é sinal de mau agouro... Ralhei com o campeiro algumas vezes. Não sabia que seriam uns dos seus últimos uivos. No outro dia o campeiro amigo amanheceu morto! Duro. Estava com fome e comeu sapo-venenoso... Maldito cururu que expele leite venenoso e faz espumar a boca de quem o morde.

A vontade de ir embora deste lugar era imenso, mas não tinha coragem. A filha do meio apareceu com febre e forte diarréia, não sei não se ela agüentaria nesse lugar. Estava desnutrida e com sintoma do tal bicho chupança, o diabo do cascudo barbeiro. Não! Iisso era demais! Meu sertão que me viu nascer não poderia fazer isso comigo; martirizando aos poucos com o tempo matava até as últimas conseqüências. Ah! Esse sertão que faz desfalecer, que vou odiando aos poucos... Tinha que pensar também, n’eu, na mulher e nos filhos que restavam aos poucos; mas que dó no coração de ver a filha do meio doente e desfalecendo aos poucos. Peguei ela e a coloquei no único pau de arara wque saia dali na semana e mandei rumo ao Sul procurar o seu padrinho. Ela foi junto com outro desertor deste sertão danado. Lá com seu padrinho ela talvez tivesse mais sorte. Lá na cidade grande ela não seria testemunha em ver os seus irmãos morrerem neste chão rachado. Ah! Esse carrasco que castiga, que deixa doente a alma, o corpo, e a vida.

A pele da minha mulher mais parece um mapa com traços de vida sem vida, benzedeiros conseguem ler em sua tez as marcas da realidade aqui existente. O curandeiro tenta até agora decifrar alguma coisa em benzimentos e orações, mas os ignorantes deuses da morte não deixam! Parece que querem todo esse sofrimento... Maldito seja meu avô! Será que ele está no céu? Ah! Meu avô, por que me rebentou neste sertão que machuca a carne! Abate o espírito!... Que rouba o meu ser e me deixa natimorto... Ah! Meu velho pai que me expeliu nesta mísera vida. Ah! Minha mãe, por que não me matou em seu ventre materno quando estava prenha? Vida!? Cadê a minha vida? Cadê a vida dos meus? Sonho acordado com ela, mas os meus pés estão fincados neste chão imaginário!

...Entardecia mais uma vez neste sertão. Lugar de sonhos. A minha barriga doía, as crianças pediam comida, e a mulher fazia o que podia em sacrifício; socava no bucho deles o pouco que sobrara de rapadura com farinha de mandioca umidecida. Os olhos dos meus filhos brilhavam jogando goela abaixo o até então do que restara. Foi quando percebi que faltava ali o filho mais velho. Olhei ao longe e vejo ele correndo em nossa direção; vinha contente com seu estilingue e bornal de revés; dá uma pelotada no curiango que pula ali do lado, mas não se importa muito com esse passarinho que estava à beira do caminho. Segue em nosso sentido todo feliz. Vejam como o sertanejo fica alegre com o pouco que consegue... Com o mínimo que a vida lhe dá! Que felicidade ver meu filho daquele jeito. Chegou! Tirou do seu bornal um calango abatido que um dia também procurou vida... Teve vida. Finalmente naquela noite mastigamos carne, estávamos contentes!

... A noite veio rápido com um vento sul brando. Deito, faço uma oração... Várias orações. Dou a benção aos meus filhos e desfaleço em mais uma noite de sono profundo.

Vai amanhecendo mais um dia neste sertão que mente, que engana. Percebo que a asa branca canta com mais alegria, o anum preto todo baderneiro faz o seu banquete dos carrapatos em cima da Mimosa. O gavião Pinhé lá em cima nos ares, plaina e canta tentando intimidar as outras aves lá embaixo, como que querendo dizer:

- “Cuidado, ainda estou aqui! Ainda estou vivo!”.

Abro a porta trançada com madeira e folhas de carnaúba, e fico animado vendo grandes nuvens escuras se formando no meu sertão. O tempo vai se fechando e parece que vai chover! Vou à tarimba, pego a lima para amolar a enxada e me apego a afiar a companheira tão desejada de roça. As esperanças renascem mais uma vez neste sertão que ilude, que logra, que mais tira do que dá. Saio pro terreiro e aos poucos começa a cair chuva em cima da minha cabeça; molha com seu néctar todo o meu corpo. Os meus filhos brincam com os fortes pingos d’água. A mulher pega tudo quanto é vasilhas e cacimbas e põe do lado de fora da casa para enchê-los com a dádiva do céu. Rimos todos juntos... Eu e toda a minha família abraçada debaixo da chuva.

Ah! Esse meu sertão, como te odeio, como te amo... Ah! Você meu sertão... Como queria um dia poder deixá-lo!?

Marcos Antony
Enviado por Marcos Antony em 01/04/2009
Reeditado em 19/08/2011
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