Vem cá Marina, me dá tua mão...
Essa noite sonhei com ela. Novamente.
Nesses sonhos tenho a impressão que o tempo não passa, revivo todos os bons sentimentos e faço o que eu deveria ter feito.
Essa palavra “deveria” na verdade é o que vem me castigando. Sim se eu fizesse, se eu reagisse, hoje eu não seria perseguido por sonhos. Mas não fiz, fui um covarde, mas como encontrar tanta coragem quando se tem oito anos de idade?
Marina foi sem dúvida a pessoa mais marcante que surgiu em minha vida. Pode ser que se eu a visse hoje meu sentimento de carinho se esvaísse, afinal, duvido que ela conserve seus cabelos pretos rebeldes como na infância. Aqueles cabelos... Que saudade!
Minha rotina foi alterada por ela. Morando no interior, me sentia o dono da cidade. Ia a padaria sozinho, muitas ruas não eram asfaltadas, no máximo ao redor da igreja tínhamos paralelepípedos, que nos encantava com seu brilho quando o sol estava a pino.
Com os moleques aprontei bastante. Depois da escola era lei irmos para o rio. Nossas mães ficavam loucas, não havia uniforme suficiente pra gente. No meio de tanta molecagem, não sobrava espaço para meninas, elas tinham seu grupinho, pareciam ter medo da gente. E não fazíamos questão que elas participassem das brincadeiras, eram muito fracas. Mas com Marina foi diferente.
Ela ficou pouco tempo na cidade, mas foi o suficiente para marcar toda minha vida. Seu pai era juiz e por causa disso ela virou uma atração a mais. Tínhamos um certo receio, mas assim que conhecemos quem era Marina de verdade a elegemos como líder da turma. Indiretamente, claro. Ela não podia saber.
Sua família usava as melhores roupas, moravam numa casa bonita. Eram todos alinhadinhos. Eu não entendia a revolta do cabelo dela, não combinava com todo aquele contexto.
Eu ficava sempre a espreita e vez ou outra ouvia os gritos desesperados de sua mãe:
-Marinaaaaaa! Penteie este cabelo menina! Venha aqui agora! Parece que você dormiu no mato!
-Me deixe, me deixe em paz!
E assim seguiu. Marina fazia tudo conosco e era isso que fazia eu acordar mais feliz ainda todas as manhãs.
O que eu mais gostava era de deitar com ela debaixo das árvores... Na verdade tínhamos a nossa e conversavamos sobre um monte de coisas.
Apostávamos quem conseguiria contar mais, fazíamos suposições loucas sobre o pote de ouro que pudesse existir no final do arco-íris, sem contar com nossa fixação por vagalumes. Tínhamos vários em nossos potinhos.
Todo dia a tarde nos encontrávamos naquela árvore. Ninguém precisava lembrar de nada, esses encontros eram tão naturais quanto respirar. Marina e seus cabelos rebeldes, sempre revoltos faziam parte da minha vida.
Na minha meninice desejava de coração tê-la para sempre ao meu lado.
Até que um dia resolvemos fazer uma aposta. Entrar no rio e apostar quem conseguia ficar mais tempo debaixo d´água. Já tinha brincado disso antes, nunca imaginei que pudesse existir algum perigo.
Fui o primeiro. Quando cheguei a superfície ouvi o número vinte. Fiquei orgulhoso, seria difícil Marina me superar.
Mas ela era terrível. Não aceitava não e não queria perder nunca. Entrou na água disposta a ganhar de mim. Comecei a contagem. Cheguei no número trinta e Marina não subia. Corri atrás dela e com um esforço sobrenatural puxei-a para a beira. Ela estava desacordada.
Enlouqueci. Não consegui pensar em nada, um choque percorreu todo meu corpo, não acreditava que perdi minha querida Marina de um jeito tão bobo.
Gritei com todas as minhas forças. Aliás, era só isso que eu conseguia fazer. Sentado, Marina com a cabeça no meu colo, não fazia outra coisa senão gritar desesperadamente.
José morador de uma casa próxima foi quem nos ajudou.Ele veio correndo, fez algumas manobras de ressucitamento e levou Marina até o posto médico do centro da cidade. Eu fiquei com a família dele, estava em estado de choque.
Depois disso e de muito apanhar de meu pai, nunca mais vi Marina. Não sei se tenho seu perdão, nunca mais senti sua mãozinha afagando meus cabelos. Nunca mais me aninhei nos cabelos rebeldes de Marina.
Eu deveria ter corrido até a casa dela, deveria ter me despedido, deveria ter contando aos pais dela que foi apenas uma brincadeira, mas como saber de tudo isso quando se tem oito anos?
Eles se mudaram, não deixaram rastros. Nunca mais ouvi falar daquela família.
Hoje em dia Marina vive apenas em meus sonhos.
Todas as noites.