TURISMO INTERIOR

Fingiram não aperceber-se de aquele violino.

- Escuta Ismael... Numa noite de primavera esta mesma musica inspirou a meu coração a forma de abrir-se, dar-se na tua alma gêmea.

O rapaz olhou para cima, mas só comprovou que no tecto dos Armazéns Campelo, a água travava uma luta desigual com as velhas madeiras. Olhou também as cabeças de mármore da cornija do Edifício anterior, com nomes tão belos como Casa Alecrim. E não foi pouco ver estas esquecidas maravilhas; a maioria da gente não repara, não repara não! Nas belezas que a certa altura indicam outros destinos. Pois a gente sempre olha, sempre olha sim! para o que não tem préstimo evidente.

- mas que musica?

- os violinos

Foi que fingiram não aperceber-se de nenhum som dançando no ar livre.

A casa das Caridades veio ao encalço, mas tão velha e desistida d que na altura pudo ser, que mesmo custava imaginar os indigentes albergados, resguardados de sua imundice pelo descuido manifesto e o temor próprio do edifício, a perguntar-se um porquê. Porem em tempos a ruída casa fora uma das maiores glorias arquitetônicas, que se supoem eternas, e poderá ressuscitar se o alcaide remata de denunciar o seu projeto e afinal decide-se um dia, porque sempre um dia é o primeiro no inicio, existir o inaugurar.

Um dia também se iniciou, como a mostra do progresso e a generosidade, devidas amabilidades e notas de alem mar, para impor um outro alçado na cidade esquecida dos ventos ativos da renovação. Fora primeiro a escola, agora o edifício alberga o concelho. Da escola se conserva o feitio e um aspecto como indicador de vidas amarradas à bênção que vem duma mínima esmola, agradável as dificuldades: os poucos mestres, os escassos alunos usufruíam, com pudor, das bondades enviadas, pelo inesquecível protetor Sr. Nicanor Salgueiro, primeiro emigrante exemplo de virtudes no trabalho e proveito na nobre arte: do amor a seus compatriotas. Seguiram outros como Emilio Dirceu pai, que inaugurou como ajuda da sociedade de imigrantes de alem mar, o Cassino do Rio; agora seu salão nobre vem sendo a biblioteca municipal, o local onde governa, com harmonia, o silencio.

- E mesmo neste local, o violino inquietante, comandando a orquestra.

- Uma vez conheci um homem, que também escutava violinos. Não gostava da Opera mas sim dos quartetos de corda, de vento e corda a fluir no ar etéreas influencias.

- então será esta cidade com aspecto renascença, a que injeta nos meus ouvidos lamurias de antiga paixão a ritmos melancólicos que assentam tardes, para se perder em calmas eternas.

- ou será tal vez o rio atravessando as velhas pontes a semelhar, em dias como este, uma inacabada primavera.

- e a luz ao longe, perdendo-se na campinha, imensa de frescura verde.

- será...

- pos é.

Fingiram então inaugurar novas cidades. E aquela por onde seus pés ajuntam, pegadas sobre pegadas, milhões de idênticas caminhadas, leva o carimbo da eterna inauguração. E morre de velha, cansa, a mão do homem, que em estas mesmas paredes tateou o sabor da prevalência no tempo.

- Os edifícios medievos perderam relevância

- devido ao que?

- Devido a que em princípios do passado século, os filhos ilustres da emigração demonstravam seu valor, seu trunfo sobre as dificuldades, enviando dinheiro para que a sua memória ocasionalmente permanecesse, nos ouvidos da sua gente. Os de maior fortuna e orgulho encomendavam as obras dum prédio por eles mesmos, e logo pagavam de gorjeta os gastos do mantimento. Os de menores recursos se reuniam em sociedade e entre vários deles, imitavam aos prediletos, gravando seus nomes acima dos portões de acesso.

Deste modo fomos abandonando a vila antiga, as casas medievais ficaram sem prestigio (ontem mesmo ardeu uma). Os comerciantes mudaram da praça da armaria, para o “Largo do Fino”, assim fora como popularmente se denominara a nova Praça Península. Por trás como vês o Cassino. Mais tarde a estação de comboios no terreiro do ate então campo da feira, condensou em este território, fora de muralha, as lojas à toa e desfez os grêmios.

- mas nessa altura ainda existiam grêmios?

- não, mas conservavam o espaço físico e mesmo a distribuição. Puderas lá estar e andarias pelas ruas sem precisar um nome, indicando cada oficio a procedência dos aromas, como o numero de artesãos a importância relativa no peso econômico da vila. Mesmo um portal trás outro se concentravam mostrando ao publico, pendurados ou quietos, os resultados do seu oficio, entre cestas ou estantes dançando nas paredes de colores adormecidas baixo o imenso bulício e renovado vigor altivo, dos cidadãos de outras épocas, que por horas se sentiam livres. Por horas como nós infelizes.

- foi uma lastima

- não, foi evolução, um continuo adaptar-se ao médio. Uma luta continua com os elementos. Lastima que não ouça hoje os violinos.

-Lastima, mesmo, mas agora o som dilui-se

Fingiram não querer mais saber.

E enquanto caminhavam fugiam pelas ruas a becos tão escuros, como quente as 13.00 h resulta ser o sol, alçado nas vidreiras tímidas.