Queria dizer tanta coisa...
Nunca imaginei que o dia fosse terminar daquela forma.
Acordei tarde depois de uma noite de sono conturbada. Tive vários sonhos, mas não consegui lembrar de nenhum. Isso para mim fazia muita diferença, porque a vida que eu vivia era a imaginária.
Na vida real eu apenas existia.
Nasci e morri pobre. Assim como a maioria dos brasileiros. Minha mãe trabalhava o dia todo, era cozinheira. Pra ajudar fazia uns bicos por fora, trazia trabalho pra casa, depois de tudo o que já tinha ralado. Como filha única, não a via como minha mãe, mas sim como uma irmã. Isso deve ser também deve ser ao fato de nunca ter conhecido meu pai. Não sabia nem o nome dele e ela levou esse segredo consigo pra sempre. Ela teve um infarto fulminante aos 42 anos.
Conversavamos sobre amenidades e momentos depois fui a padaria buscar café. Quando voltei vi uma aglomeração, correria. Não queria acreditar que nada de ruim tivesse acontecido, mas estava enganada.
Deste dia em diante fiquei sozinha no mundo. No começo fui ajudada pelos vizinhos. Quanto menor o ambiente, maior a solidariedade. Morávamos num quarto, ou se preferirem, um cortiço. Durante 02 meses não passei necessidade, mas a partir daí as coisas começaram a piorar. Eu precisava pagar o aluguel, senão minha casa seria a rua.
Olhando pra trás não sei se tomei a decisão acertada, porque mesmo fugindo das ruas elas me perseguiam. Viviam dentro de mim e eu tirava meu sustento delas. Não foi fácil deitar com homens estranhos de cheiros estranhos.
Eram vários, cada um com uma história, com um pedido diferente. Eu queria apenas ter a vida que você despreza. Queria ter uma família, um lugar no ônibus para eu me espremer e cochilar depois de um dia de trabalho, queria ser vista como gente e não como uma prostituta nojenta. Isso era o que mais doía. A única pessoa que me via como gente foi minha mãe e ela se foi. A casa vazia doeu. Era assim que eu me sentia, como uma casa vazia...
Com o tempo acreditei naquilo que as pessoas viam. A bebida e as drogas foram facilitadores para eu agüentar a barra. Só fazia programas se tivesse bebido, nem que fosse um pouco. Cheirar era luxo, mas quando a grana dava eu não perdoava. Alguns clientes ofereciam, e eu via a droga como um bálsamo para as minhas feridas.
Só que naquela noite fria de outono eu sai limpa. Não bebi nada. Estava calejada, com o pensamento longe quando fui abordada por ele. Primeiro cliente do dia, a labuta estava começando. Ele era jovem, devia ter uns 35 anos, estava bem vestido. Combinamos o valor e fomos para um hotelzinho das redondezas.
Locais que agora eu faço questão de esquecer. Não quero lembrar-me das paredes úmidas e mofadas, do colchão fino e encardido sobre a cama de cimento, sobre o banheiro fétido e entupido, sobre as camisinhas amontadas num canto.
Chegamos lá e como que num passe de mágica sua personalidade de alterou radicalmente.Ganhei um tapa na cara forte, e fui empurrada em direção a cama. Praticamente fui violentada. Ele queria transar das formas mais bizarras possíveis e diante da minha negativa se alterava e me batia mais e mais.
Socou meu estômago, minhas costas, meu rosto. Eu ensangüentada e ele me penetrando com violência. Fiquei destroçada por dentro e por fora. Queria viver, apesar de tudo, morrer naquela situação era algo muito humilhante para mim.
Quando ele sugeriu introduzir uma garrafa em mim na presença de outra menina, reagi. Não sei como arranjei forças, estava muito machucada, dilacerada. Nessa hora ele sacou uma arma. Eu já tinha perdido a linha do perigo e parti pra cima dele.
Na luta consegui pegar sua arma e acertei em cheio seu pescoço. Aqueles olhos estáticos- o sangue viscoso, não fui eu! Eu não tive culpa!- Mas quem iria acreditar em mim?
Já não era eu, para os outros eu era uma puta suja sem sentimentos. Drogada, matou um pai de família! Me desesperei, a mesma arma que tirou a vida dele, levou a minha embora também.
Não queria que o dia terminasse daquele jeito.
Queria dizer tanta coisa, fazer tanta coisa mas não deu.