Madrugada

Dormir. A falsa sensação de sono confunde as palpebras. O dia havia sido como tantos outros. Acordou de manhã, saiu para o trabalho e, como de costume, tomou café em um trailer do caminho, trabalhou o dia inteiro com a maquinicidade de sempre, almoçou, jantou e viu televisão como de costume. O dia seguia estupidamente igual. Deitou na cama para dormir. Por mais que fechasse as palpebras, os olhos não se fechavam. A noite trouxera pensamentos impuros para o sono. Antes eles fossem a angústia de não ser ninguém no trabalho, de ser acomodado na vida, de não possuir automóvel, mas dormir com a sensaçao de apenas não ser, é insuportavel.

O relógio marcava duas e três da manhã e nada naquela casa fazia mais senido, tudo era alheio a vida daquela madrugada real. As janelas eram estranhas passagens da luz do poste, que entrava em pequenos feixes retangulares desenhados no sofá. Nenhum ser naquele sofá, ninguém vivo na casa, só os olhos moviam-se, registrando para a alma a angústia do nada. Nem mesmo o silencio existia. Incomodava-o estar ali. Sem dormir, imóvel, fazendo parte da mobília da casa, adornando a sala para alguma vida que por ventura aparecesse.

Três e quarenta e oito. Imóvel, sem dormir, sem pensamentos. O contorno da mesa, curva levemente saliente ã esquerda, refletindo a luz de acordo com sua silhueta, as bordas arredondadas formando um círculo quase perfeito, a madeira, já antiga, trazia ranhuras da dilatação natural. Um barulho. Um grilo. Volta a respirar. Algum espectador da madrugada veio lhe fazer companhia – ou avisar da vida? O trilar soa com a intimidade da voz de um velho amigo. Onde estão os amigos nessa hora tão necessária? Não queria estar só. Mas tambem não queria a companhia de ninguem. Necessitava apenas de um espectador, que após o espetaculo lhe tivesse pena, se sentisse triste e saisse dali para casa com a sensaçao morbida, velada e real da beleza da dor alheia. Pleno do melhor da sua dor, um pernilongo.

Cinco e quatroze. O sol veio cobrindo a realidade dos objetos, atribuindo valor e funçao a cada um deles. Menos a ele.