PROJETO RONDON

Além do lema “morrer se for preciso, matar um índio nunca”, tantas vezes repetido pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, nosso instrutor repetia exaustivamente “integrar para não entregar”, lema aplicado ao incremento que os ditadores militares fizeram ao Projeto Rondon aonde eu e mais dezenove colegas pernambucanos iríamos nos dedicar por quatro semanas em plena selva. O Parque Nacional do Xingu seria nosso endereço por aqueles vinte e oito dias inesquecíveis e o refugio preferido de nossas mais deliciosas lembranças para o resto de nossas vidas. Sim, nós éramos rondonistas. Trabalharíamos em equipes multidisciplinares com universitários de todo Brasil, numa vivência jamais imaginada por qualquer um de nós. A preparação incluiu curso de sobrevivência na selva, primeiros socorros, construção de abrigo, fogo sem fósforos, o escambau. Embarcamos num Hércules da FAB com dois bancos inteiriços sem encosto nas laterais do salão. Não havia cinto de segurança, apenas a grade de lona pendente do teto onde podíamos nos agarrar. No meio do salão foram colocados pallets com toda traquitana de acampamento militar além de um Jipe Willis (herói da segunda guerra) ainda em funcionamento. A porta basculante foi fechada e o avião taxiou pela pista molhada pelo tremendo temporal. Algumas goteiras denunciavam o precário estado de conservação daquele candidato à aposentadoria compulsória. A ordem veio seca. - Segurem-se! E o avião levantou o bico em direção às grossas nuvens. Alguma turbulência e em pouco tempo estávamos flutuando num céu de brigadeiro rumo à Brasília. O pouso na base aérea foi perfeito, apesar dos saltos até a acomodação das rodas no asfalto. Mais carga e rondonistas juntaram-se a nós e levantamos vôo novamente. Anoitecia quando pousamos na pista de barro encharcada sob intenso temporal. Estávamos no Xingu. O trabalho ia começar. O Cabo taifeiro havia preparado um caldeirão de sopa de legumes com carne que foi servida com bastante pão, café sem coar com bastante açúcar em canecas grandes de alumínio e bananas. Muitas bananas cozidas servidas com manteiga. O Comandante era um Coronel que depois do jantar falou por muito tempo sobre a importância do nosso trabalho e do orgulho que deveríamos ter por termos o privilégio de participar ativamente do projeto e de prestar aquele serviço à Nação Brasileira. Os monitores dos cinco grupos foram escolhidos por critérios militares, impossíveis de serem entendidos e em caso contrário, de serem aceitos por pessoas normais. Fiquei no grupo amarelo. O monitor era da UFMG, (R2 no Hospital Universitário em Belo Horizonte) sujeitinho medíocre que se considerava tão importante quanto o último biscoito, com recheio de chocolate, do único pacote. Fiz amizade com Rebeca cuja pesquisa dizia respeito aos endoparasitas humanos, mas que demonstrava bem mais interesse nos óleos essenciais e flavonóides dos vegetais utilizados na cosmética indígena. Pelo menos teria com quem conversar naquele fim de mundo. Ela falava com sotaque gaucho. Voz aflautada abrindo os mais belos olhos azuis que vi em toda minha vida. A reunião inaugural de nosso grupo, onde cada um apresentou seu projeto de trabalho, não terminou bem. Lembro perfeitamente das ultimas palavras do nosso monitor:

- Durante nossa estadia aqui, quero que vocês me chamem de doutor Ernesto e exijo o empenho de todo grupo para a realização do projeto de saúde que lhes apresentei.

Quando foi franqueada a palavra, falou o amazonense, especialista em Ictiologia, que iria atualizar o levantamento feito sobre a ictiofauna consumida pelos Xavantes, o baiano que iria coletar dados sobre o imaginário e uma cearense cujo projeto era o levantamento da mamo fauna do Xingu. Depois de cada fala e antes da minha o doutor fez questão de menosprezar cada um desses projetos, fazendo comparações e ressaltando a importância do próprio. Pedi e me concederam a palavra.

- Quero dizer aos colegas e ao nosso Coordenador que, pelo menos eu, não terei estadia no Xingu, pois não sou navio, eu terei estada. (risos)

- Qual a sua especialidade? (perguntou o monitor com cara de poucos amigos)

- Sou Bacharel Biólogo.

- Ham, logo vi. Mais um sub curso.

- Outro engano seu, doutorzinho. Nós biólogos estudamos e conhecemos os cinco Reinos. Vocês médicos estudam apenas o organismo humano, um quase nada dentre os mamíferos. Na realidade a medicina é uma pequena fração da História Natural, poderia muito bem ter a classificação de sub curso, mas não existe conhecimento maior ou menor do quê. Qualquer área do conhecimento é tão importante como as demais, portanto não espere que abandonemos nossos projetos para nos dedicarmos ao seu. Cooperação sim, você terá de todos nós quando tivermos disponibilidade de tempo. Nós também temos que preparar nosso relatório para apresentar no retorno às nossas faculdades.

Os outros seis membros do grupo se juntaram a mim e o nosso monitor, o doutor, teve que engolir a sua empáfia descabida. Acertamos nossas reuniões a cada dois dias para ajustes de conduta e troca de idéias no desenvolvimento do trabalho.

Continua em Maitê.