Indo embora
Ela está indo embora. Mas por algum motivo desconhecido, escolheu um caminho diferente do habitual, uma trilha de ruas desertas, abandonadas pelo resto da cidade. Um caminho contendo apenas vestígios de quem um dia já passou por ali. E agora é como se este lugar fosse apenas seu. Por alguns minutos, aquelas ruas lhe pertencem, mas ela não percebe. Está só de passagem.
Caminha próxima à parede, envolvendo com o braço a bolsa que mantém junto ao corpo. Mas não se importa com o ambiente à sua volta. Permanece concentrada em sua caminhada e na direção que segue com passos firmes. É uma fuga momentânea, mas presa entre sua origem e seu destino.
Tem o olhar fixo no ausente, que diante de seus olhos é o cimento da calçada passando por baixo de seus pés. Só o que pensa é em terminar o dia, como se a noite só chegasse depois que ela concluísse suas atividades diárias: entrar em casa e fechar a porta, sem ter ninguém lhe esperando, para então desaparecer um pouco até chegar o dia seguinte.
O ar está parado. O sol que já se pôs ilumina ainda o céu com fiapos de luz que escapam por entre as nuvens, deixando cair a penumbra da noite como se o céu estivesse à luz de velas. Ela passa cortante pelo cenário urbano. Seus passos são os únicos movimentos visíveis, seguidos por uma sombra artificial e distorcida. Sente-se a única presença viva, que não nota os insetos escondidos espionando-a. Ela vai silenciosa, ouvindo apenas os sons de seus sapatos ecoando nas paredes envelhecidas, sons agressivos que se destacam na bolha sonora uniforme que encobre a cidade. Mas o outro lado do quarteirão parece tão distante...
Caminha automaticamente, é um ato repetido dia após dia. É então que uma súbita hesitação a faz quase interromper o próximo passo e assim toda a sua rotina, e ela levanta os olhos como para ter certeza do lugar para onde está indo, perguntando-se inconscientemente se quer mesmo chegar, num impulso de talvez seguir algum instinto adormecido e desobedecer a ordem do dia que estava pronta desde que o despertador tocou. Mas tornar o caminho diferente até o fim, sem saber onde ele acabará, é só um relâmpago de idéia surpreendente. O sapato fica suspenso no ar por uma fração de segundo, para em seguida dar continuidade à caminhada pré-estabelecida e ela se esquecer de tudo o que nem chegou a pensar. A idéia morre antes de aparecer, sufocada pela consciência de suas tarefas e obrigações de amanhã.