Alface
Nunca se soube ao certo o motivo do apelido, mas ele ficou conhecido por toda a geração de alunos da década de setenta como “Alface” – ninguém o chamava pelo nome – ele era simplesmente o “Alface” , o pior aluno , o terror dos professores, a negação total do que poderia se denominar “bom exemplo”, mas ao mesmo tempo era uma espécie de Herói-bandido – o cara que divertia demais aos outros. E por vezes, é verdade, até assustadoramente.
“Alface” era tão irreverente que estando com um dente totalmente corroído e tomado de cáries , decidiu extrair ao invés de trata-lo, pois considerou que seria muito interessante ostentar o “visual” sem um incisivo superior , o que de fato lhe atribuía ares de peculiaridade que combinadas a uma face redonda e gorda povoada de cavidades de acne, transformavam “Alface” num ser , no mínimo , diferente .
Como ele não se apegava minimamente aos compromissos com o estudo, sobrava-lhe tempo para tudo o que os demais tinham de abdicar, de modo que “Alface” sempre estava a par das últimas , trazendo as novidades do esporte, as fofocas da escola e os últimos “hits” do momento, numa época em que só existiam os compactos e os Long-Plays . Sempre atual, ele impressionava a todos e sua presença apenas física no ambiente da escola se destinava a manter essa proximidade com a comunidade estudantil.
Foram muitas as estórias hilárias que “Alface” legou para a posteridade, mas por falta de espaço vamos aqui contar apenas duas delas, para prestar reverência a sua biografia. A primeira foi um dia em que “Alface” fez uma aposta com um grupo de alunos de que permaneceria todo o período da aula de matemática dentro de um antigo armário de madeira maciça que ficava ao lado da mesa do Professor. Iniciada a aula, o mestre logo percebeu um clima diferente e que algo havia de errado ali, mas enfim foi ministrando sua aula.
Murmúrios e nervosismo impregnavam o ambiente enquanto equações e fórmulas eram escritas no quadro negro, até que o velho e vivido professor percebeu muitos olhares dirigidos pelos alunos em direção ao armário e sob um silêncio sepulcral começou a ouvir ruídos vindos do interior do móvel . Abriu a porta e entre a perplexidade e a natural tensão descortinou-se a cômica cena do “Alface” abanando para o Mestre e dizendo-lhe: - O l á . . .
Depois desse episódio e cumprida uma pena de suspensão de quinze dias, “Alface” retornou para o convívio da escola, contando as aventuras que haviam se consumado ao longo das duas semanas de afastamento compulsório e durante algum tempo , resignado pela punição, comportou-se adequadamente.
Logo porém, a mesma turma que o cultuava mas também o incitava, indagou – “e aí não vai aprontar outra ?” Ao que ele respondeu com invulgar determinação- “Calma já comprei um quilo de feijão branco e meia dúzia de ovos” . Ninguém entendeu nada , mas “Alface” logo tripudiou – “seus burros não sabem que feijão branco e ovo cozido rende o pai de todos os peidos...”
Revelada a intenção só faltava escolher a vítima e a sorte recaiu na professora de literatura , uma magricela quase anã, que a turma havia apelidado de Penélope, tal sua semelhança com o personagem dos quadrinhos. Iniciado o período de literatura “Alface” soltou o primeiro de uma seqüência de torpedos, mas já o suficiente para que algumas meninas mais sensíveis passassem mal. Como ninguém se identificava como autor da façanha, a Professora retirou-se enfurecida da sala e só voltou ladeada pela direção da escola.
Depois disso, “Alface” não foi mais visto freqüentando a escola e todos os demais seguiram o rumo de suas vidas, sem nunca mais se saber notícias do rebelde, mas há quem assegure que ele se tornou jornalista ou poeta .