Esboço de felicidade

Existe uma linha que demarca certa localização de nossos atos; as vidas como um todo são determinadas por ela, de difícil identificação é uma fronteira onde ocorrem as mudanças mais radicais, ultrapassado tal marco impossível voltarmos atrás, pois a partir dai, as mudanças desencadeadas são como tsunamis arrastando tudo à sua frente, deixando para trás os escombros de qualquer coisa que se encontrasse anteriormente em pé.

Ali parado com uma arma apontada para aquelas pessoas eu me encontrava no exato momento do cruzamento de uma destas linhas, sabia que nada mais seria como antes, não haveria volta, tudo que era sólido desmancharia no ar como previu Marx, não saberia precisar o passo antecedente ou o posterior à minha derrocada, o que sei é que a queda é abrupta, vertiginosa; alguns flashes distorcidos turvavam minhas idéias e se confundiam com as lembranças do que parece ter sido um esboço de felicidade.

Era inverno, a chuva fina encharcava minhas roupas tornando-as pesadas, frias e úmidas, o vento cortava meu rosto como navalha, e eu a caminho da casa de Luísa, levava às mãos um honesto ramalhete de tulipas tão murchas e ressecadas pelo frio quanto meu rosto, entretanto, os efeitos de um amor desvairado, quase adolescente, impelia-me à aventura pelas ruas tristes de uma noite de inverno em Porto Alegre, pensava em seu sorriso e seus braços quentes que espantariam meu frio e fariam valer cada gota congelante que cobria meus poros.

Bato na porta, segundos de silêncio que parecem séculos fazem meu coração disparar, eu não agüentaria mais nem um instante sequer longe dela; enfim, os passos que ouço do outro lado denunciam que alguém se aproxima, como o esperado, a porta se abre revelando o objeto de meus desejos, parecia mais linda do que jamais estivera, a calça de moletom surrada e a camiseta de propaganda, típicos trajes caseiros, realçavam sua graça, convidou-me a entrar, entrei, mas seu ar agudo era o indício de que eu havia cruzado mais uma das inúmeras linhas que seriam desencadeadas a partir dali; olhei em seus olhos, entreguei-lhe as flores mortas.

Aquelas luzes das viaturas policiais girando e ofuscando minha visão, tornavam difícil a focalização dos rostos das pessoas sob meu poder, todas se pareciam com Luísa, achei que seria possível então reverter os acontecimentos e fui invadido por um otimismo desenfreado; se eu me entregasse e explicasse tudo o que sucedera até então, a minha falta de jeito para perceber as fronteiras intransponíveis e irreversíveis, a vida vazia e desesperançada levada até então, que fazia com que me agarrasse aquele sonho vão de felicidade, mesmo contrariando a ordem natural da existência humana, pensei ser um ato razoável dar um passo atrás.

Fortes estrondos foram escutados por todos os que ali estavam presentes, a fumaça pintou de branco e se misturou ao ar tornando-o asfixiante, indiferentes à minha presença, as pessoas começaram a sair, esbarravam umas nas outras, os que por descuido caiam eram quase pisoteados, eu por minha vez, tentei mexer as pernas, mas elas não me obedeciam, pareciam petrificadas, meu abdômen estava duro como rocha, a polícia entrou mas parecia não notar minha presença, só então percebi que, o prédio sustentava-se sobre minhas costas, cada um de seus cinqüenta andares repletos de histórias, algumas alegres, outras tristes, como a vida, virei a página e passei à próxima.