FORRO DE MESA
Naquela monótona tarde de verão fui consumido por uma incoercível angústia. Talvez isso se desse por eu sentir minha grande impotência perante um mundo distorcido pela ganância e incompreensão. Lia o naturalismo machadiano com tentativa de escape da realidade.
Já farto e sem alcançar o objetivo almejado, pus-me a observar um simplório barquinho que outrora havia rabiscado no forro da mesa. Curiosamente, tive a impressão de aquele barquinho se sentir desfocado e estéril. Não fazia sentido a sua existência ali naquele contesto. Não havia um mar nem nada que lembrasse uma realidade mais próxima dele. Apenas fartas guloseimas estampadas naquele forro.
Sentindo enorme pena do infeliz, estendi as mãos num ato quase instintivo para alcançar três canetas que repousavam na outra extremidade da mesa. Quis dar mais vida ao barquinho, mais razão de ser e de existir. Primeiro fiz o reflexo de sua vela um pouco a baixo do casco. Um triângulo rabiscado turvamente com a três cores. Depois fiz outro triângulo a sua frente, outro em suas costas e os cerquei todos com um quadrado. Fui criando um desenho sempre com triângulos e quadrados surgindo assim, daquele desenho inicial, uma grande estrela. As estampas do forro -- desenhos de pães, café, manteiga, que até então não fazia parte da realidade do barquinho, também entraram na ficção que estava sendo criada.
O desenho ganhou força, tamanho e um ar surrealista. Já não era apenas um desenho e sim um painel no qual, mesmo no turbilhão de idéias contraditórias desencadeadas pelo inconsciente, o barquinho se fazia visivelmente presente e centralizado. Então me peguei a observar aquela obra que remetia ao infantil e ao irracional. O barquinho poderia muito bem ter sido ignorado, deixado de lado. Ao contrário, foi trabalhado e pela insistência transformado, transformando e incorporando todo o contesto exterior a ele. Ironicamente me veio à mente um velho ditado: “vivemos sob o mesmo céu, mas nem todos vêem o mesmo horizonte”