A batalha do coletivo

Para o meu amigo Bira

Ponto de ônibus, meio dia, todo mundo voltando para almoçar em casa e depois retornar à labuta. Menos Seu Edevair, aposentado, 68 anos, um pouco calvo, um pouco mal da vista, um pouco barrigudo, um pouco de cada coisa que um velho aposentado deve ter. Seu Edevair é um boa praça de nossa cidade, com ele todo mundo conversa, brinca e solta piada. Tem um ar de menino com a inconseqüência de um adolescente, as qualidades perfeitas para aquele meio-dia ensolarado dentro de um ônibus-sauna, que em vez de aroma de eucalipto, exalava um cheiro “agradável” de suvaqueira.

Vamos por os pingos nos is antes de continuar a história. De suvaqueira ninguém gosta, espero que o leitor concorde com isso, mas para Seu Edevair não falasse nem a palavra, que ele já corria de perto. Tinha nojo daquela catinga que os mais puídos chamam de cê-cê. O pessoal lá da feira, aonde ele costumava ir sempre, sabia disso e, só de safadeza, ficavam sem usar desodorante, limão, sabonete ou qualquer coisa que o valha para eliminar tal odor. No final do dia iam dar um abraço no velho, que saia correndo feito criança. Revelada a aversão do nosso personagem a velha e insuportável suvaqueira, vamos voltar para dentro do ônibus, no qual Seu Edevair encontrava-se voltando da feira para casa.

Subiu no ônibus. Tinha estudante, galinha, mulher, homem, fresco, sapatão, sacola, rapariga, tudo que se pode encontrar na feira resolveu pegar aquele coletivo. Antes de passar a roleta Seu Edevair já sentiu a catinga de sovaco, e o pior que ela não vinha só de um par de sovacos, porque seria impossível um fedor daquele vindo só de uma pessoa, ao menos 30% do ônibus devia estar com suvaqueira. Tentou voltar, mas a multidão que vinha atrás não deixou. Passou a roleta e, por sorte, conseguiu arranjar um lugar no corredor ao lado de algumas sacolas de coentro, - para quê tanto coentro meu deus? -, ao menos eles conseguiram amenizar o aroma espalhado por todo ônibus. Um pouco mais aliviado, nosso herói (suportar aquela cantiga era um ato heróico) começou a passar a vista por entre os habitantes provisórios daquele coletivo lotado. Estavam lá: Lucinha, que era quenga do cabaré de Lôra; Seu Antônio Carroceiro, acompanhando uma senhora que não tinha ninguém pra pegar as sacolas no ponto de ônibus de sua casa; uma patota de estudantes lá no fundo, gritando alto e soltando piadas sem graça e Zé Cotó, um evangélico que sempre tentava arrebatar ovelhas naquele antro que era o serviço de transporte público. O ônibus parou. O pessoal que estava em pé se distribuiu melhor no veículo depois da freada brusca do motorista. Sobem mais três, sob os gritos de protesto dos estudantes, - Bota no teu colo motorista que aqui não cabe mais!-. Entre esses novos passageiros sobe uma senhora grávida, que depois de alguns: “afasta ai que ela tá buchuda!”, “ó o mêi que ela ta prenha” conseguiu se segurar em pé bem em frente a Seu Edevair: a vítima.

Mais uma pausa para explicar aos mais desafeiçoados ao transporte público, algumas das táticas chantagistas de velhos, grávidas e deficientes físicos. Alguns pedem logo a vaga e, você, que está tão cansado ou mais do que eles, é obrigado a ceder o lugar, por educação social ou até mesmo por conta de alguma coroa mal resolvida que começa a ralhar. No entanto, existe outra tática muito mais difundida e eficiente: a pressão psicológica. Ela consiste em o passageiro que está de pé, segurar-se com as duas mãos no assento, ambas em cada extremidade, criando assim uma prisão que exerce um forte constrangimento sobre a pessoa que está sentada, essa técnica chega a ter aproveitamento de 99% quando aplicada por mulheres grávidas, pois o ventre em que ela carrega seu rebento é posto quase sob o colo da vítima.

Dadas as devidas explicações, voltemos à barriga sob o colo do Seu Edevair, que desesperado, procurava uma saída. Olhava para os estudantes, que disfarçavam com uma descaradez sem precedentes nas linhas de ônibus de nossa cidade, olhava para Lucinha, a rapariga, que fazia de conta não ver o olhar desesperado daquele velho que tantas vezes havia lhe pago algum a mais, para que Lôra, a dona do cabaré, não ficasse com o dinheiro todo; olhava para Zé Cotó, o crente, que de imediato abriu a bíblia e pôs na frente do rosto, - E agora o que fazer meu deus?-, não podia pedir a Seu Antônio Carroceiro, pois com certeza uma das fontes daquele odor insuportável vinha dele e se trocasse de lugar com a grávida não tinha molho de coentro que desse jeito.

A expectativa estava criada dentro do coletivo, Seu Edevair levanta ou não levanta? Até o motorista já espiava pelo retrovisor. Criou coragem, cheirou com força os molhos de coentro que estavam na sacola ao lado e levantou, dizendo gentilmente a senhora grávida: - Pode sentar aqui senhora -, ela olha o lugar vazio, enquanto seu Edevair, já sofrendo com a catinga do ônibus, tenta amenizar a situação cheirando seu próprio sovaco, precavidamente munido de leite de colônia. Quando ele levanta a cabeça para olhar o que acontece no ambiente, vê que a “buchudinha” ainda não havia sentado. Retoma a coragem, que naquela hora já era arrependimento, e pergunta meio constrangido a ela: - A senhora não vai sentar? -, ela olha pro velho de cima abaixo com uma cara esnobe, - Estou esperando esfriar -, todo o coletivo se cala e fica na expectativa da resposta. Seu Edevair, velho de guerra, passa a mão sob os ralos cabelos e responde, - Então, enquanto a senhora espera, vou ficar sentado. -, o coletivo explode em gritos de estudantes, raparigas, evangélicos e todos aqueles que negaram ajuda ao velho Edevair, que vai sentado, com o sorriso do triunfo.