Uma Hora na Sala de Atendimento

- Vamos fazer uma rodinha. Peguem as cadeiras, por favor, e ponham-nas em círculo. Vou apresentar-lhes um texto meu para que apontem as correções que vocês achem necessárias e, no nosso próximo encontro, tragam por escrito os comentários favoráveis ou não que o texto possa merecer.

- Mas vamos apontar as correções enquanto você estiver lendo?

- Isso mesmo. Não tem problema que eu seja interrompido. Vamos tentar fazer como se fosse um bate-papo. Vamos lá:

“Eram mais ou menos 10h05. O piso frio de cerâmica esmaltada na cor gelo. O ar condicionado talvez na graduação limite. A sala sem janelas. O ambiente, apesar do frio, não seria totalmente hostil como pudessem sugerir as faces das pessoas a serem atendidas. Todo mundo de cara meio emburrada. A TV ligada num programa infantil, que por certo não deveria agradar nem mesmo as próprias crianças que estivessem diante da telinha àquela hora em casa. A não ser pelo desenho animado.

Três boxes para as atendentes. Três monitores interligados a um programa qualquer de cadastro ou armazenamento de dados. Três moças jovens, todas num terninho lilás da cor dos azulejos que revestiam a alvenaria do balcão. As paredes da sala revestidas por painéis dos mesmos azulejos lilás que se alternavam com outros de cor cinza. Uma tentativa de se obter um efeito que pudesse ser agradável aos olhos. Inteiramente anulado pelo frio que se sentia ali.

Verifico que o atendimento nos boxes não é feito por senhoras. Aliás, nunca foi, conforme pude observar das outras vezes em que estive ali para o exame de Raios X. Outras moças aparecem também. Algumas usando terninhos pretos. Deveriam ter outra função. Há um rapaz de jaleco branco por trás e eventualmente nos boxes, junto com uma das moças. Devia ser da manutenção dos micros. Era a sala para o registro do atendimento das pessoas que iriam fazer o exame dos Raios X.

Olho para o bebedor na parede. Ele não olhava para mim. Tenho sede, apesar dos quatro copos d’água que tive de ingerir em jejum de manhã cedo para o exame anterior na mesma clínica. Uma ultra-sonografia qualquer. Pélvica. Tinham emporcalhado o meu ventre com um gel que não iria manchar a camisa. A cueca era preta.

Dirijo-me a um dos boxes. A menina morena de olhos claros e lábios levemente grossos e sinuosos me atende:

-O senhor trouxe o pedido?

-Sim, respondo, mostrando-lhe o pedido do médico e as carteiras de identidade e do plano de saúde.

Estou convencido de que faço parte do seleto grupo de pessoas “que comeram quando eram crianças”, no dizer do jornalista que ouvi pela manhã na Internet. Ninguém tem plano de saúde. Ou todo mundo tem. Porque naquela sala tem sempre gente.

-Qual a data do pagamento?

-Dia 30 de cada mês, respondo, verificando que podia ter dito dia 30 de outubro, que era o mês anterior àquele em que estávamos.

-Assine, por favor.

Após assinar no verso do pedido, ela me pediu que aguardasse.

Atendentes, com papéis nas mãos, entram e saem da sala pelo corredor de acesso. Treze pontos de luz com lâmpadas fluorescentes tornam o ambiente bem iluminado, mas não menos frio. Na minha frente aquela que provavelmente eu nunca mais veria de novo. De baixo para cima. Sandália bege de salto. Não diria que os pés eram bonitos. O que não seria essencial, pelo menos para mim. As unhas estavam pintadas, mas o esmalte parecia gasto. Calça jeans justa e desbotada, torneando o que seriam pernas longas e bonitas. Bainhas desfiadas, leve efeito decorativo para os tornozelos. Não era gorda e nem magra. Alta definitivamente, sem que com isso pudesse ser indicada para a prática do basquetebol. Blusa verde de malha ou lã com mangas até os cotovelos (seriam as mangas ¾?). Não estavam pintadas as unhas das mãos. Afinal ela não tinha se vestido para ir a uma festa. Seios não volumosos. Cabelos em longos fios escorridos, louros e lisos. Possivelmente lavados há pouco. Terminavam na altura do pescoço. Olhos castanhos. Lábios finos, não tão sensuais como os da morena que tinha me atendido. Nariz afilado e meio alongado. Mas era bonita. Assim como a morena que tinha me atendido. Se tivesse que ficar olhando para alguém, tinha que ser para ela. Como realmente o fiz. Embora soubesse que não ia adiantar nada. A morena de lábios grossos e sinuosos estava trabalhando. E mesmo que não estivesse, não iria adiantar também. Ambas muito mais novas que eu. A loura tinha me concedido alguns rápidos olhares. Provavelmente só para verificar se eu ainda poderia significar alguma coisa, a partir talvez do modo como me achava vestido. Nada em especial, apenas compatível com o que se espera de um homem da classe média um pouco acima da meia idade. Que se deveria contentar apenas como o exame de Raios X que viera fazer. O que demorava a acontecer e que, por isso, levara-me a procurar distração, escrevendo na cadeira macia em que me encontrava alguma coisa banal, na falta de um livro ou de um jornal, ou da atenção maior de alguém.

De qualquer modo, restava-me o Raio X. Porque a ultra-sonografia eu já tinha feito. E deveria dar-me por satisfeito porque, no caso da US, a médica tinha dito que estava tudo bem. A morena de olhos claros do atendimento, cabelos lisos e negros em coque, nunca me olhava. A loura, como disse, me olhava muito de vez em quando.

-Jéssica?

A loura levantou-se de imediato ao chamado da moça de avental branco que deveria ser do serviço técnico de Raios X.

-Vamos?, perguntou a técnica.

-Puxa! Uma hora de atraso!, foi o que a minha loura respondeu.

Fiquei ali, olhando-a dirigir-se ao recinto do exame. Decidi parar de escrever, embora ainda tivesse algum tempo pela frente, pois tinha chegado depois dela. Eram onze horas agora”.

- Não gostei. Li tudo e vocês nada disseram. Será que não houve a necessidade de nenhuma correção?

-Aparentemente não, respondeu um senhor grisalho, certamente bem mais velho que o orientador do grupo. De qualquer forma traremos nossos comentários no próximo encontro, continuou o senhor grisalho, assumindo certa posição de liderança.

- Está bem, mas entendam que dificilmente haverá um texto que não possa ser melhorado.

- Concluo então que todos os livros deveriam ser reescritos, interveio Sabrina, com a espirituosidade de seus quinze anos.

- Err..., é que daria muito trabalho fazer tudo de novo, explicou o orientador, sem conseguir disfarçar a falta de convicção no que dizia.

Rio, 29/04/2008

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 11/03/2009
Código do texto: T1480527
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