Ossos do OFÍCIO... DELA

Folga é para quem pode.

Ela não pode, não agora.

Talvez seja um certo não querer, ou o tal do querer demais.

Verdade seja dita, ela ama esse labutar.

Todo trabalhador formal tem hora certa para o começo e o fim do trabalho, ela é da informalidade. Começa a hora que consegue, termina a hora que permitem.

Atende a diversos clientes em um único expediente, mas sempre um por vez, ou melhor, quase sempre; há quem faça questão de atendimento em grupo. Demanda maior dela implica em maior pagamento.

Há dias de atendimento a domicílio, esses são mais... corridos e hoje foi um desses.

Ela e sua maleta com ferramentas e adornos da profissão, pela cidade seguiram.

Eram as primeiras horas de trabalho, três clientes muito bem atendidos e mais alguns pela frente, ou por trás, nunca se sabe. Cada um faz seu pedido, ela apenas atende, adapta, ajusta.

Pedidos ouvidos, serviços executados ali na hora, ao gosto do freguês.

Algumas horas mais tarde, teve um mais complexo; eram muitos detalhes entre pernas e braços, muitos ajustes foram necessários. Ela e cliente suavam. Que falta faz um ar CONDICIONADO. Mas o pagamento compensou tudo, até o calor. Trocaram sorrisos. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Na rua, conferiu seu pagamento pela terceira vez, um TOC desenvolvido nos muitos anos de trabalho e uma considerável coleção de golpes. Da vida, da gente, dela mesma.

A caminho de mais um cliente, recostada no banco alto do coletivo, lia pela terceira vez o mesmo parágrafo e não conseguia entender do que se tratava. Sentiu-se burra. Era o primeiro livro impossível de ler, mistério para ela era o porquê falavam maravilhas desse tal de Nietzsche. “E fica nisso? Entra na floresta, sai da floresta, entra na floresta, sai da floresta.” Fazia caretas, balançava a cabeça, ira absoluta em uma só oração.

Reconheceu um cliente passando pela catraca, desceu no próximo ponto sem cumprimentá-lo, já havia chegado.

Novo cliente, moço forte, grosseiro e inquieto; adjetivos que a levaram a sangrar. Sem problemas, talvez esses sejam os riscos da profissão, mas doeu consideravelmente. Terminou o serviço como pôde. Recebeu, conferiu, proferiu:

― Sem mais clientes por hoje.

Na volta, nem ousou folhear o livro. A moça ao lado viu o sangue escorrendo:

― Como a senhora conseguiu machucar aí?

― Atendendo um moço, ele remexeu tanto que um alfinete da barra da calça entrou. Sorte minha vai ser se essa unha não cair.