Ele caçava Demónios

Lembra-se bem da primeira vez que viu e sentiu os seus.

Estava à beira do mar, num cair de tarde de equinócio. As vagas escuras avolumavam-se , gigantes, umas sobre as outras, como se quisessem chegar o mais depressa possível à praia para a fustigarem violentamente com a sua força demente e um barulho de fazer tremer o menos impressionável de todos os homens do mar. Tinha apenas oito anos, e desde essa altura nunca mais foi o mesmo. No meio daquela massa negra de água e do seu temível rugir, sentiu que todos os seus medos galgavam a fronteira do subconsciente e mostravam-se no seu exterior duma forma que seria esplendorosa se não possuísse em si todo o horror dos receios de um ser. A recordação foi de tal ordem que nunca mais foi o mesmo, mesmo quando via o mar calmo e dócil temia-o, pelo potencial de destruição que este possuía. Continuou naturalmente em ir à praia, sempre que podia, tanto por a amar, como para enfrentar os seus demónios; mesmo em tempos de calmaria este manifestavam-se silenciosamente, pois adepto da natação e nadador exímio, praticava esta em qualquer lugar que tivesse água, nunca tendo tido problemas, a não ser no mar, onde ia perdendo a vida uma série de vezes, tanto porque nadava para demasiado longe, como porque apanhava uma perigosa correnteza, ou por mera exaustão; o mais estranho é que já tinha nadado em alguns dos rios e albufeiras mais perigosos que conhecera, sempre arriscando, mas nunca correndo perigo. Era apenas no mar que a morte o ameaçava tocar, e era apenas no mar que os seus demónios o olhavam olhos nos olhos e lhe diziam sem palavras – “vamos vencer-te, és nosso”, e ele era, mas nunca fora vencido.

Ao crescer ele deu consigo atrás duma vulgar secretária, a várias centenas de quilómetros do seu medo, mas por estranho que pareça deu consigo a ser o depositário de mágoas e de horrores de quem o rodeava, ou com apenas se cruzava nem que fosse casualmente, nem que fosse por breves segundos. O seu olhar inspirava uma calma enorme a quem lidava com este homem, da sua voz tranquila saíam palavras doces capazes de mitigar qualquer drama, de desanuviar qualquer realidade mais tenebrosa. E ele fazia-o de forma inconsciente, pois não sabia de onde lhe viam as palavras ou a calma. Nunca estudara psicologia e muito menos tinha noções, mesmo que básicas ou elementares da ciência de mente, ele não percebia nada dessa ciência, e no entanto era um mestre…Conscientemente sentia-se assustado com as histórias, com os relatos que ouvia, mas no entanto, quando a atitude mais acertada seria remeter-se para si próprio e afastar-se de tudo aquilo, uma força branca fazia-o ouvir, escutar, fazia-o falar, fazia dar a paz a quem a procurava.

Não havia uma razão para isso, a não ser talvez pequenos indícios: homem sociável e de bom trato, optara por viver só, por ter o mínimo de amarras sociais e afectivas. À noite não via televisão, não ia ao cinema, saia uma vez por outra para alimentar o corpo de afectos temporários e tinha apenas o telefone sempre ligado para o caso dos Demónios dos outros esbarrarem em si, dissiparem-se em si. Uma vez por semana ia ao mar, fazendo uma directa e observando-o longa e calmamente até o dia raiar, a olhar para os monstros escondidos.

E ouvia, ouvia sempre cada vez que estava ao lado do mar, vozes que vinham dentro dele e lhe repetiam duma forma incessante “vamos vencer-te, és nosso”

E ele sabia que assim como de certa forma tinha renascido numa noite de equinócio, numa noite de equinócio havia de morrer, mas não hoje.

Ele caçava Demónios

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