A EMPREGADA GLOBALIZADA...
-Dolores! Ô, Dolores!!!!! – Grita Keiza chamando a empregada. E continuou.
- Êeee, empregada lesada! Se fosse dia de pagamento aquela surda por conveniência vinha à galope! Sávio, vê acha aquela peste e diz que preciso falar com ela pra ontem!!!
- Calma, Keiza... Ela já está vindo. É bom melhorar no trato com ela porque você corre o risco de ficar um bom tempo sem empregada... – Avisou o marido.
- Você que pensa! O portão vai ficar assim de empregadas implorando para trabalhar aqui! – Gabou-se Keiza.
Keiza era daquele tipo de patroa que pensa (se é pensa uma pessoa ignorante assim) que os empregados estão sempre de prontidão para seus berros ou estalar de dedos. Dolores que não tinha nada de lesada, aliás era viva além da conta. Nordestina, vinda de Coxixola da Paraíba, esperta que nem só ela, escutou a ofensa daquela patroa siliconada.
-Qui foi dona Keiiiiiiiiiza, a sinhora tá cum doce de barriga, é? – Dolores não perdia uma chance para atazanar ainda mais a cabeça daquela destemperada patroa. Com aquele ar de inocente, a empregada ia dando o troco para as ofensas.
- Que doce de barriga, Dolores! É dor de barriga! Vê lá se sou mulher de ter verme feito seus curumins! Mas, escuta aqui minha filha, não desconversa... Quando eu chamar, é para vir logo. É para largar o que estiver fazendo e me atender, ouviu? Eu pago muito bem a você para ficar estressada! – Esnobou-se Keiza.
- Sim, patroinha... Mas, estava preparando o munguzá dos meninos e se eu paresse de mixer, criava pelotas e a criança num gosta di pelotas... – Esclareceu calmamente Dozinha, como era chamada pelas crianças da casa.
-Tá, tá, ta... Você sempre tem uma “boa” explicação para dar... – Estressou-se Keiza. Ela continuou:
- Olha, Dolores, aquela sandália prata e bronze está com o salto solto, quero que leve naquele sapateiro Chulé Cheiroso e peça para colar. Já liguei para lá e acertei tudo. Você vai lá depois do almoço, procure dona Irene entregue a ela minha sandália para que faça o devido conserto.
- Mas dona Keiza, a senhora tem pra mais de oitenta pares de sapatos e vai colar essa sandália mixuruca? – Questionou a intrometida empregada.
- Ora, me faça o favor! Por acaso pedi sua opinião? Para seu governo esta é uma Dolce Eleganza, importada sua desinformada, fora de moda! Além do mais, ela é meu pé de coelho. Todos os contratos importantes da empresa, eu os assino com elas nos pezinhos. E assim é e assim será! – Disse com arrogância arremessando as sandálias nos braços da Dolores.
- Pode deixar, dona Keiza.
Keiza retirou-se apressada, da porta ainda fez a última recomendação antes de sair:
- Criatura de Deus, não vá me esquecer de ir no sapateiro! – Nariz lá em cima, saiu batendo portas.
O jardineiro Hector, amigo de Dolores, comentou:
- Hoje a patroa tá uma leoa! Não retruca ela não, viu Dozinha... Corre risco de perder emprego por bobagem.
- Nosso Senhor Jesus "Cristin" da Santa Filomena, valei-me! Dá conta dessa minha língua! E como dizia aquela dona Yolanda, quando o marido enchia a paciência dela... “Meu Deus, me dê paciência para suportar esse homem porque se me der força, eu bato nele!”, não há cristão que “guente” isso não. Será que ela não sabe que a escravidão foi abolida?
Dolores não era nada boba nem ingênua, sabia muito bem seus direitos e entendia que pelo fato de ser empregada doméstica não podia ser ofendida.
- Você escutou, Tonha, a dona Keiza chamando meus mininos de curumins com vermes... – Keiza falou para a babá. E tirou do bolso o celular com a gravação da ofensa:
- Vou é botar um processo nas costas dessa dona siliconizada, aí ela vai ver só quem é a bicho do mato! Tô globalizada, mulher...
-É Dozinha, eu também escuto cada coisa, engulo cada sapo, jacaré, até baleia para pagar a faculdade da minha filha. Depois que ela se formar, tô saindo fora dessa prisão! – Antônia era outra a trabalhar sob tensão.
-Hoje a cobra vai fumar, hoje eu tiro essa mulher do salto! – Rindo, Dolores foi preparar o almoço.
Por volta das treze horas, Keiza liga para casa dizendo que houve um imprevisto e que não iria almoçar em casa. O marido e ela almoçariam juntos no hotel onde seria a reunião e que às dezessete horas um motoboy iria buscar a tal sandália e uma colar de diamantes.
-Tá bom, dona Keiza... Tá tudo certo. Deixa comiiiiigu! – Falou a animada empregada.
- Dozinha, eu não conformo com a maneira que dona Keiza trata você... Você é animada, caprichosa, carinhosa com os meninos, é uma bruxa na cozinha de tão gostosa que é a sua comida... Não sei por que ela abusa, não valoriza seu trabalho. – Disse a babá.
- É inveja! Tem rico que tem tudo e mesmo assim não quer que a gente não tenha nada, nem alegria de viver... E graças a Deus, sou feliz com o que tenho e com ainda vou ter, pois disposição e força de vontade não me faltam! – Filosofou Dolores.
Quando o relógio marcou dezesseis horas, a babá perguntou para Dolores:
-Ô, Dozinha, minha filha de Deus! E a sandália da patroa? Eu não vi você indo na rua hoje... – Preocupou-se Tonha.
- Esquenta não, Tonha, já tá tudo certinho... Dei logo um jeito. – Tonha tinha no rosto aquela cara de gato ladrão, cara de quem fez ou vai fazer alguma arte...
Britanicamente, o motoboy foi buscar as encomendas da patroa.
Keiza estava no Hotel, aguardando o seu “pé de coelho”, as sandálias da sorte.
- Hoje vou arrasar, vou chegar no saguão do hotel em grande estilo! – Gabou-se Keiza para o marido.
- Esse vestido azul turquesa lhe caiu divinamente, querida. – Respondeu o galante marido.
O motoboy chega a hora combinada, recebe uma gorjeta generosa previamente prometida. Daí a pontualidade do rapaz.
O hotel está repleto de empresários, bancários, profissionais dos mais altos cargos do país. Keiza iria fechar negócio com uma das mais conceituadas empresas no ramo de elevadores do grupo alemão.
Bem produzidos, o elegante casal foi descendo as escadas. Na metade da descida, Keiza desequilibrou, escorregou e rolou até o fim da escada. O salto da sandália quebrou e aquela mulher que havia saído da suíte do hotel toda produzida, chegou no meio dos convidados, toda prejudicada!
Tonha havia colado a sandália da patroa com super bonder que não era apropriada para aquele serviço como a boa e velha cola de sapateiro...
Descabelada, vestido rasgado, em total desalinho, pela primeira vez aquela mulher sentiu-se arrasada, no chão. E chorava, gritava e xingava a empregada. A cólera era tão grande que Keiza pareceu esquecer-se de que estava no hotel para uma reunião importantíssima. O marido, constrangido, tentava acalmar a mulher:
- Keiza, levante-se, vamos tomar uma taça de vinho... É bom para acalmar.
Aos gritos, a mulher respondeu:
- E quem disse que eu quero me acalmar, eu quero ficar é bem alterada para matar aquela empregada desgraçada, aquela analfabeta ignorante, nordestina comedora de lagarto!
Depois dessas declarações, quem iria fechar negócio com uma empresa cuja sócia revelou-se uma mulher agressiva, preconceituosa, sem classe, horrível?
Após ter falado em alto e bom todo para todo mundo ouvir, é que Keiza caiu em si e tentou desculpar-se do destempero. Já era tarde... “A palavra proferida é como um cavalo selvagem. Uma vez solta não há como recuperá-la”. A empresa do casal perdeu o contrato para a firma concorrente. Fim de festa!
Quinze dias depois Keiza ainda se descabelou e tentou morder o calcanhar de tanta raiva quando recebeu a intimação onde era acusada de preconceito, maus tratos, atos de hegemonia, entre outras coisas porque naquela noite depois de ter caído, quando chegou em casa, keiza além de agredir verbalmente a empregada Dolores, quebrou um cabo de vassoura no corpo dela.
Mas, a primeira vez que Dolores apanhou na vida ao invés de chorar, ficou rindo, pois sabia que aquela surra iria custar bem mais que os silicones daquela patroa má...
“Quem ri por último ri melhor...” – Pensava Dolores. O corpo doída, mas a satisfação de vingar-se daquela patroa abusada e cruel amenizavam-lhe a dor. Dolores estava feliz por libertar-se daquela mulher que a fazia de escrava.