LIÇOES DA ALMA

Um dia, ao trafegar na rua, em meio a chuva miúda, que aligeira os passos itinerantes, ele e seu guará-chuva, pararam em uma marquise meia seca. Olhos voltados para si, cegos ao mundo a sua volta.

Pensava unicamente em seu emprego, os ganhos com o próximo negocia que faria. Precisava ganhar aquela conta de qualquer jeito. Estava mal nas metas em sua agencia de propaganda e o chefe não lhe dava folga. Esta conta lhe salvaria, mas a concorrência era grande. Seu colega, se é que ele podia chamar Flavio assim, estava a fim de ganhar esta conta também. Ele não tinha escrúpulos. Venderia a própria mãe para conseguir uma conta. Sentia que estava perdendo terreno. Precisaria perder os seus escrúpulos também. “O mundo é cruel e as regras são claras: ou dá ou desce”, dizia seu chefe. Ele nitidamente preferia o Flavio, mas lhe deu um ultimato. Agora não era mais dinheiro somente, era seu emprego.

Um ônibus desavisado em pressa urbana, passa e lhe da de presente uma onda marrom e fria, acertando-o em cheio. Foi como um tapa na cara. De sua boca jorrou palavras inomináveis, testemunhadas por uma criança, de roupas claras e bem limpa para o local e momento.

Ao ver aqueles olhinhos curiosos brilharem ao ouvir tais despautérios, envergonhou-se:

- Que coisa, né? A gente aqui sequinho e vem este...ônibus e nos molha todo.

- Puxa! O senhor pode me responder uma coisa?

- Claro menino

- Que palavra era aquela que veio depois de puta que o pariu, buc... O que mesmo?

- É..bem... mas onde esta tua mãe?

- Ah! Eu não sei? Não a conheci.

- Como é? E teu pai?

- Também não.

- Mas você esta sozinho aqui? Que esta contigo?

- Ninguém. Estou sozinho.

- Meu deus, temos que chamar alguém.

- Porque?

- Estas perdido. Vou tentar achar algum policial

Porem a esta altura, a rua já estava deserta. Havia apenas ele, sua roupa encharcada e aquele menino, tão lindo.

- o senhor tem filhos?

- Não, sou solteiro.

- Mas já é tão velho. Quantos anos?

- Bem, eu tenho 45 anos... mas eu não entendo. Você não esta acompanhado de ninguém

- Sim estou

- De quem? Onde ele esta?

- Aqui, ao meu lado?

- Como?

- Meu anjo amigo, Lino.

- Como é que é?

- Não esta vendo?

- Ouça menino, já esta tarde e você precisa ir pra casa. Onde moras?

- Por aqui mesmo, mas se o senhor quiser eu posso ir morar com o senhor.

- Mas o que é isto?

Ele para e olha mais atentamente para o infante. Percebe que possui um sorriso encantador e olhos azuis vividos como ninguém. Na verdade seu olhar parece reconforta-lo de algo que não sabe bem explicar.

- você é um menino de rua? Não parece. Tão limpo e bem arrumado. Você deve ter alguém.

- Moço. Eu to com fome. Pode me dar algo para comer?

- Meu deus! Venha, vamos procurar algum lugar para comer.

Caminharam até uma lanchonete a alguns quarteirões dali. Estava praticamente vazia. Havia um homem no balcão e mais nada. Sentaram-se a mesa junto a janela e esperaram a garçonete anotar os pedidos.

- você esta com muita fome? O que quer comer/

- num sei. Qualquer coisa. Meu estomago dói.

- Pobrezinho. Você esta perdido, ou quem sabe sofreu um acidente, bateu a cabeça ou algo assim...- nisso a garçonete chega e pergunta.

- Pois não o que vão querer?

- Eu quero um café preto com um pedaço de torta, aquela ali no balcão.

- E pro seu filho?

- Ele não é meu filho.

- Seu sobrinho, sei lá.

- Ele não é nada meu, apenas...

- Senhor não me interessa o parentesco. O que o garoto quer?

- Bom... me traz um chocolate quente e um pedaço de bolo.

- Ok!

- Você gosta de chocolate né?- dirigindo-se ao menino

- Sim gosto muito.

A garçonete se retirou com um olhar desconfiado sobre os ombros. Ele olhou para o menino e começou a pensar em si mesmo quando tinha aquela idade. Seus sonhos, planos e tristezas. Perdera o pai muito cedo e a mãe era que lhe cuidava. Ela era zelosa, jamais deixaria ele sozinho no centro da cidade. Se bem que uma vez...

- moço, o que é que o senhor esta pensando?

- Nada. Era uma lembrança de minha mãe.

- Hum, ela era bonita?

- Sim era linda. Tinha um sorriso aconchegante.

- O sr sente saudades dela

- Muito.- seu olhos marejam e sua garganta seca. Sua mãe. A quanto tempo não pensa nela ? sua mãe...lhe ensinara tanto sobre a vida. Como foi esquece-la. Lembrou-se de quando dizia, diante de um infortúnio qualquer, aquelas palavras encantadas:” aconteça o que acontecer, nunca perca a ternura, pois ela antecede a tudo, inclusive a verdade. Somente a ternura lhe trará sabedoria. Acalma teu coração e seja terno, sempre”

- Minha mãe era uma sábia.

- Que lindo! Não lembro de minha mãe, mas acho que ela deve ser como a sua.

- Pequenino! Vamos encontra-la, eu prometo. Agora coma.

Ele tomou o chocolate com avidez e depois com a mesma voracidade, abocanhou aquele pedaço de bolo. Mastigou um pouco e depois engoliu. Parou e olhou para ele e falou:

- O sr é muito bom. Não devia deixar a tristeza tomar conta de seu coração assim.

- O que dizes pequeno? Que tristeza?

- Eu vejo em seus olhos. O sr parece tão triste

- Não é nada. É a vida que nos deixa assim.

- Mas a vida é bela. Como pode trazer tristeza.

- Você é tão novo. Não sabe o que lhe reserva o futuro. As vezes é tão difícil prosseguir...

- Porque?

- Deixa pra lá. Mas você tem razão. Não devemos cultivar a tristeza. Mas me diga, qual é seu nome?

- Daniel

- Belo nome. Você me disse que não se lembra de sua mãe?

- É. Estou confuso, o sr pode me ajudar?

- Claro. Como foi parar ali?

- Não lembro... Só lembro de uma multidão...Um barulho e depois, tive medo.

- Coitado. Você deve ter se perdido de sua mãe.

- Mas eu não me lembro dela, como pode?

- Quando a gente fica muito nervoso, isso pode acontecer. É como um bloqueio.

- Já aconteceu com o sr?

- Sim, em me lembro que quando eu tinha a sua idade, acho...- nisso um turbilhão vem a sua mente. Uma porta até então fechada se abre e uma historia não contada se revela.

Sua mãe estava lá, na loja, comprando alguma coisa, ele não se lembra bem. Só lembra daquele doce, sorrindo para ele, dizendo: “pegue-me, pegue-me!”

Ele não hesitou e pegou. Colocou em seu bolso e sorrateiramente sai de perto da estante, chegando junto a sua mãe. Ao acabar as compras, ela passou no caixa e pagou. Porem o atendente, ao final dos cálculos de sua conta, perguntou a ela:

- devo incluir o doce que seu filho pegou?

- Doce? Que doce?

- Ora minha senhora, ele pegou um doce, eu vi.

- Filho venha cá!

- Sim mãe?

- Você pegou um doce escondido?

- Eu.? Não!

- Pegou sim- diz o balconista- esta em seu bolso

- Filho, me esvazie o bolso!

- Mas mãe eu não peguei...

- Filho! Agora!

Ele baixou a cabeça e tirou o doce,entregando para sua mãe. Não ousou olhar em seus olhos mas sentiu o peso deles sobre sua cabeça. Ela entregou o doce, pagou e dirigiu-se a porta., parando antes de sair.

- vamos!

O som era uma adaga e não uma ordem. Sentiu seu sangue gelar. Saiu ao seu lado da loja e antes que chegassem a parada de ônibus, ela parou e perguntou com ar severo:

- você queria aquele doce?

- Sim mãe

- E porque não pediu?

- Achei que não ia me dar, afinal estamos sem dinheiro.

Ela pegou o rosto dele de forma enérgica e disse:

- sim! Eu não lhe daria o doce. Sim! Estamos sem dinheiro! Mas isto não é desculpa para roubar. Aquele que se apropria do que não é seu, não é só um ladrão, mas um perdedor. Pois perde o que é mais valioso na vida, sua alma. Eu não quero que você seja um ladrão.

- Mas eu tava com vontade...- ele fala já em prantos

- Vontade não é fome. Se você roubasse porque tem fome, eu entenderia, não aceitaria, mas entenderia. Mas você não tem fome. Tem vontade. Não seja escravo de tuas vontades, seja dono delas.

Ele sentiu uma vergonha imensa. Não era merecedor do amor de sua mãe. Baixou a cabeça e chorou. Queria morrer. Sua mãe acariciou suas melenas como se dissesse: agora acalma teu coração, porem um estampido ecoou mais forte. Foi um tiro que cortou o ar. Depois disso foi confusão. As pessoas correram em frenesi. Uma manada de desequilibrados que separaram ele de sua mãe. Era como uma brincadeira de cabra-cega sem vendas. Estava tonto e perdido. O ar lhe faltara. Os pensamentos lhe fugiam. Os gritos até então ensurdecedores aos poucos se emudeciam. Suas pernas ficaram bambas e moles. Sentiu o chão lhe faltar e antes de cair, teve a impressão que mãos fortes lhe ergueram do chão. A escuridão lhe abraçou.

- Moço! O que foi? O sr está bem?

Aquela voz pequenina parece ter-lhe arrancado de dentro do mar. De um mar escuro e tenebroso. Mas junto venho à memória de algo escondido. Algo enterrado nas entranhas de seu ser. Aquele momento fatídico. A morte de sua mãe. Meu deus! Estava lá, dolorido mas soterrado e um simples menino fez emergir. Tanta culpa, tanta dor.

- Moço! Desculpa, eu não queria trazer tristeza para o sr

- Tudo bem querido. Apenas lembrei-me de algo que... Mas deixa pra lá. Vamos sair daqui e encontrar tua mãe.

Pagou a conta e saíram juntos porta afora. Caminharam mais alguns quarteirões desertos e nada de policia, mãe, ou alguém vivo. Já era tarde. Resolveu levar aquele menino até seu apartamento que era ali perto, pois ele já estava cansado e depois se afeiçoou ao pequeno.

Chegando ao apartamento minúsculo, preparou uma cama no chão e deixou o menino dormir na sua.

- Não repara, que é casa de pobre. Mas se precisar de algo é só me acordar.

- Obrigado moço. Mas sua casa é muito bonita. Eu sinto um carinho nela

Ele achou estranho aquele comentário, mas entendeu que o pobre estava cansado e confuso. Amanhã, antes de ir para a entrevista, iria passar em uma delegacia. Tinha a esperança que eles não fizessem muitas perguntas ou o prendessem demais lá, pois tinha a reunião. Pensava nisso quando o menino interrompeu –o

- Moço, me diz uma coisa. Como era sua mãe?

Aquela pergunta de novo. Mas não ia fugir. A verdade já estava la. Uma chaga reaberta em sua mente e espírito. Mas a dor era amenizada pela lembrança de sua mãe antes de tudo aquilo.

- ela era tão sabia e gentil. Nos éramos pobres mas ela fazia de tudo para não faltar nada de essencial.

- Ela era carinhosa?

- Sim.- a voz embarga e os olhos não contem a chuva que vem.

- Ela morreu não é?

- Sim...

- Desculpa...

- Tudo bem. Amanhã vamos encontrar tua mãe eu prometo

Um silêncio se fez. Como se a dor precisasse de um hino mudo para instalar-se. Após alguns minutos desse hino o menino falou em um tom cálido.

- Não fique triste. Eu sei que onde Lea estiver deve estar orgulhosa do senhor.

- Porque diz isso?

- Por que o sr é muito bom.

As lagrimas trouxeram um sono pesado de sonhos: a mãe, a dor, a confusão, a solidão. Tudo em uma agonia eterna em um pesadelo continuo. Indo e vindo. Até que a luz do dia lhe remeteu a realidade. Olhou para o lado e viu sua cama vazia. Chamou por Daniel e nada. Percorreu os corredores, perguntou aos vizinhos. Por fim, com o peito apertado voltou ao apartamento. Foi quando descobriu, perto da cama, em uma cômoda, um bilhete. Era de Daniel. Uma letra simplória de criança:

“Moço. Não se preocupe comigo. Me lembrei de minha mãe, graças ao seu carinho e fui atrás dela. Acho que não deve pensar em sua mãe com tristeza mas com alegria, pois quando olhei pros seu olhos, eu a vi. Ela era muito boa como o sr é agora. E esse foi o maior presente que ela deixou pro senhor. Acredite. Obrigado pelo carinho e até um dia!”

ficou tão emocionado que não viu que horas eram. Arrumou-se apressado, após uma consulta ao relógio e foi a reunião sem contudo tirar o menino da cabeça.

Chegando lá, Flavio e o chefe já estavam com o cliente:

- atrasado ein?- disse o chefe- tudo bem, consegui convencer o cliente a esperar, mas não devia. Apesar que depois da explanação do Flavio, acho difícil ele perder a conta.

- Tudo bem. Posso começar.

- Sim, mas cadê seu material. Não vai apresentar nenhum quadro ou slaid, qualquer coisa.

- Não! Tive uma experiência que me ensinou muito.

O cliente se aproxima deles e comenta:

- Olha, tive uma boa impressão de seu colega, porém devo ser sincero. Estou a procura de uma campanha que valorize o meu produto, voltado para as mães e para os filhos. Algo que seja...

- Terno!

- Sim!

- Sr?

- Anselmo

- Pois bem. Eu poderia lhe falar de muitas coisas. Da qualidade de seu produto, da marca, que é líder de mercado. Mas isto não é o foco. Acho que o senhor deve pensar em seu produto de forma maior. No que ele representa. Ou suscita.

- Continue.

- Ternura. É simples. Ternura. É o que nos embala quando bebe e que nutre nossas almas. Com certeza é o maior tesouro que uma mãe passa para um filho. É nisto que sua campanha tem que se basear.

- Então é só isso, ternura.- fala o cliente com um ar intrigado.

Abruptamente o chefe, tentando remendar o que ele acha um fracasso, fala:

- Bom sr, é claro que sua campanha não será tão simplória assim. Acredito que a idéia do sr Flavia tem mais haver com o seu produto. Ira representar melhor...- o cliente interrompe

- Não diga bobagens. É excelente! É exatamente o espírito que eu procurava. Gostei! Quero que o senhor faça minha campanha.

- Obrigado. O sr não vai se arrepender.

O cliente se despede, deixando um chefe e colegas boquiabertos. No entanto ele esta tranqüilo. Nem se quer houve as posteriores bajulações de ambos em seus ouvidos. Senta-se calmamente, pede um café para a secretaria e pega um jornal que esta próximo. Folheia na intenção de achar alguma noticia daquele menino quando por um acaso para na sessão de horóscopos. Nunca foi de olhar para este assunto, mas algo o detém. Hoje era seu aniversário e nem se lembrara. Olhou o que seu signo dizia e sorriu chorando:

“Hoje, você devera lembrar do passado para alcançar seu futuro. Não esqueça da ternura ao enfrentar desafios. Cor de sorte: branca; numero: 36, seu anjo da guarda: Daniel”.

Ita poeta
Enviado por Ita poeta em 25/02/2009
Código do texto: T1456128
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