Manuscrito sobre volatilização (a Karl Marx)

Cambaleantes escuridão afora, seus passos sôfregos denunciavam a hedônica noite que se sucedera, ainda nas narinas o odor das meretrizes, “mulheres de bem”, senhoras e senhoritas, o qual trazia à sua memória recente o minuto anterior vivido, as pessoas nas ruas a dançar, os encontros fortuitos responsáveis pela total entrega aos prazeres efêmeros da carne, carne fraca, que neste dia foi libertada para vivenciar seus desejos.

Entretanto, agora Romão encontrava-se só, empenhado na difícil tarefa de voltar à sua casa, a lua iluminava seus passos que ecoavam no vazio da noite, esta por sua vez se preparava para o merecido descanso, cada pisada era respondida por um eco correspondente, que fazia a caminhada parecer, quando em ritmo acelerado, a marcha de um exército cansado voltando do front, talvez por causa de seu estado de embriagues, talvez pelo sono que lhe caia sobre as pálpebras, tornando-as insuportavelmente pesadas, o fato é que sentia algo semelhante a começar flutuar, andar sobre nuvens, nunca andara sobre nuvens, mas caso isto ocorresse a sensação deveria ser similar.

Ao dirigir suas mãos aos bolsos da calça a procura de seu isqueiro, teve a tentativa frustrada pela falta de massa das mesmas, que se tornavam transparentes, voláteis, semi-sólidas, não conseguiam segurar nada; a evaporação no momento de sua descoberta começou a se apossar do resto do corpo, suas roupas ganharam o chão enquanto o corpo começava a ganhar os ares, a altitude se ampliava, árvores, casas e postes distanciavam-se, os passos tal qual uma marcha continuavam em seus ouvidos, mas agora tomavam outros tons, como de cascos de cavalo ou outro animal semelhante, apesar de não poder vê-los, aproximavam-se.

O negro da noite cedeu lugar ao avermelhado dos primeiros minutos do amanhecer, ao levitar pelas vielas da cidade que se preparava para acordar, pôde enfim contemplar o espetáculo se aproximar em ritmo agora compassado e lento, tratava-se realmente de um exército, os primeiros trabalhadores a tomarem o rumo dos pontos de ônibus e linhas de metrô, o som por seus ouvidos capitados era dos pés de tais laboriosos transeuntes, estes possuíam patas de bode e andavam em rebanhos, logo atrás o próprio Mefistófeles conduzia o bom andamento de seus cordeiros.

Eu por minha vez observava atônito, com a inocência de criança, da sacada do apartamento onde minha família e eu morávamos, até hoje não sei ao certo se foi sonho ou realidade aquele amanhecer em que perdi o sono e fui tentar recuperá-lo à janela de meu quarto, só sei que a partir de então passei a acreditar na estória que minha mãe contava, falava para termos cuidado, pois, o diabo andava solto nas noites de carnaval.