Ensaio sobre música concreta #3 ou, sinfonia para instrumentos de fogo

Três mil peças por dia, esta era a meta, a esteira rodando freneticamente como um tanque de guerra que avança em território inimigo, esmagando qualquer obstáculo que por ventura esteja no caminho da conquista; apesar de seus parcos 10 anos de idade, mal vividos, se bem que Xia He (lótus no verão) não conhecia outra realidade que não aquela, o garoto vivenciava a árdua rotina de operário colaborador ao bom desenvolvimento econômico da República Popular da China. Mais alguns anos e seria promovido à seção de testes da fábrica de armas; em seu intervalo para o almoço adorava ver seus colegas de trabalho mais velhos e experientes de tal setor, disparando pistolas e rifles em um alvo que por pilhéria, possuía uma foto de George W. Bush, uma das pessoas mais odiadas no país. Aos de sua idade, entretanto, era designada a menos honrosa das tarefas na fábrica, revisar todas as armas que passavam pela esteira, sua escola, era a rotina de movimentos mecanizados que em seu coração produziam efeitos muito mais destrutivos do que as lesões em seu corpo.

Sentira que algo quente introduzira-se indevidamente em seu corpo, Pablo que andava assoviando em uma típica noite de verão no Wisconsin, levou reflexamente as mãos às costas, sentiu um forte ardor, aquelas logo se macularam com seu próprio sangue, pneus de carro cantarolaram aos seus ouvidos a música dos que não toleram a diferença, através de seu olhar horizontalizado pode ver rapidamente a caminhonete afastar-se, tudo parecia um sonho, o barulho dos carros rapidamente se distorceu lembrando o som de máquinas fabris, perdendo a velocidade e intensidade logo em seguida, enquanto tudo escurecia.

A noite tornou-se iluminada, as pessoas não tiveram dúvidas ao sair às ruas; como estrelas cadentes que atendendo ao pedido secreto de seus observadores, coquetéis molotovs cruzaram os céus, quem lá estivera, relata que noite como aquela nunca se vira, os confrontos com a polícia foram intensos, os cidadãos levantaram barricadas nas avenidas e fizeram delas a expressão da fúria de uma população descontente com as condições de vida, impostas pela lógica dos dominantes, eu não estive lá, sei de ouvir dizer; após dias de confrontos o presidente teve que renunciar ao cargo, uma comissão popular foi eleita para cuidar dos interesses dos cidadãos, minha mãe sempre lembra e relata a respeito daqueles dias de glória, quando a população tomou as ruas após o governo ter proibido a transmissão do reality show que mobilizava o país, o coração e a mente de seus contemporâneos.