Devastação
Naqueles olhos castanhos eu vi todo o desespero do homem que sai apressado do trabalho e encontra os quatro pneus furados do carro que lhe serviria de salvação.
As mãos à cabeça, agarradas aos cabelos numa tentativa de arrancá-los como se isso fosse minimizar a sua dor. Grossas lágrimas corriam por seu rosto enrugado precocemente, seu corpo retraído escondeu a estatura de 1,80m sob a sombra da impotência.
Pude sentir no rosto a lufada do vento desesperador que ele suspirou enquanto pensava em alguma coisa, alguma coisa, uma saída, alguma coisa. O telefonema da esposa, suplicando a volta imediata para casa, onde a avó com câncer necessitava de socorro.
A esposa não sabia mais como proceder, já havia feito de tudo para acalmar sem sucesso a crise respiratória da sogra, e o assobio cortante que saía do peito assustava as crianças, que queriam o colo confortador da mãe.
Atormentada, esperava o marido. Tentava a todo custo esquecer o pensamento sombrio e libertador da morte. Desejava-a como a um filho. A doença carcomia vagarosamente o corpo da velha e a lucidez da jovem, deixando-as prisioneiras no mesmo cárcere.
Correndo de volta à empresa, havia loucura em seu semblante. Alucinado, mal conseguia discar. Ligar para quem? Baixou a cabeça tentando coordenar o pensamento e eu vi que a qualquer momento a insanidade tomaria conta de todo o seu corpo. Alquebrada. Inútil. Simples.
Atormentada, esperava o filho. O grito da falência respiratória enchia os pulmões de lama fétida. Seus pensamentos voltados somente para a sobrevivência. O instinto é que saía de sua boca, buscando socorro através dos gemidos longos e apertados. Havia nela uma dança macabra.
Conseguiu ligar para o socorro com a ajuda de seus colegas de trabalho. Pois certo de encontrar a casa à mercê da morte, seu desespero irrompeu na culpa do não chegar. Não chegava coisa alguma, alguma coisa, nada. Não gritou por medo de perder o emprego.
A preocupação se transformou num muro de pedras caiadas. Porque não chegava? Onde estava? Os corvos gritavam lá fora. A música era insuportável, um arfar indo e vindo, o choro fino das crianças em seu ouvido.
As luzes piscam diante dos olhos embrutecidos pelo ar. Os membros nadam no torpor das câimbras incessantes, e ela leva consigo todas as lembranças da vida que viveu. Em sua respiração, a calma do depois.
A espera agora é utopia. Socorro, sirene, os corvos vão embora. A morte entrou na casa, preenchendo todos os lugares. O silêncio devastador. O vazio que liberta. Os quatro pneus furados.
Texto publicado no "Livro dos Prazeres"- Coleção Caderno de Autoria SESC-Santa Catarina