A primeira noite só.
Era a primeira noite que dormia naquela casa sozinha. Ali onde criou seus filhos, acompanhada do marido. A mesma casa que recebera amigos, adolescentes, namorados.
Desabafos, gritos, ódio, amor. Toda gama de sentimentos que perseguem os filhos de um casal. Foi ali que soube que a melhor amiga de sua filha seria mãe aos dezesseis anos e ficou acordada até tarde imaginando o que aconteceria se fosse a sua filha e não a outra menina. Na sabia o que pensar, mas sabia que se a menina precisasse de ajuda, poderia contar com ela.
Dessa casa saíram duas noivas, um dentista e um professor. Todos seus filhos, seu orgulho de mãe. E todos esses momentos, sempre contaram com a, por vezes incômoda, presença de um cachorro. Enfim; uma família completa.
Agora, passados os anos, o cabelo teimando em descolorir, ela faz um balanço de tudo. Põe de um lado a felicidade de um lar sempre movimentado, os almoços de domingo, os netos que começam a chegar, uma menina e dois meninos, as economias para formar os filhos, as formaturas e as festas dos casamentos. Vê que toda sua vida foi dedicada a um único homem. Então se pergunta quantas dessas mulheres modernas são capazes de ser fiéis como ela foi. Depois olha para dentro de si. O sonho de ser uma dessas mulheres modernas que também tivera quando jovem. Não ambicionava presidência de empresas, carreira política, não. Desejava ensinar, dar respostas, ser professora. De História. Amava o passado, mas não deixava de viver o presente. Respeitava as origens, procurava a causa de todos os problemas do mundo em alguma passagem mal resolvida num tempo anterior.
Como não foi educada para isso, fizeram dela uma mãe de família. Apesar da inteligência privilegiada que possuía, limitou-se a fazer os cálculos cotidianos das despesas do mercado, da escola das crianças, da farmácia. Talvez por esse sonho ter passado em branco, os outros filhos vejam com desdém seu jeito interessado de tratar com o filho professor. Mas não a culpam. Sabem muito bem a mãe que os criou e que os ama igualmente. Talvez ela apenas entenda mais da profissão dele que das nossas, é o que pensam.
Porém essa mulher não se arrependeu de abrir mão de seu projeto de vida para ter tornado-se esposa dedicada e mãe. Ao contrário. Tem muito prazer em ensinar as jovens mamães que têm seus primeiros bebês sobre os cuidados que lhes devem dispensar. Assim ela faz-se um pouco professora. Realiza-se sagazmente, como toda boa mãe. Apesar de nunca revelar o quanto lhe doía preparar o enxoval do casamento em vez de comprar os livros da faculdade. Dor essa que só acabou quando seu primeiro filho nasceu. Pela primeira vez em muito tempo teve um objetivo na vida: fazer de seu bebê um homem feliz, dar a ele todo o apoio que só quem gera a vida consegue dar. Esse é o segredo maior de toda a felicidade que teve na vida até agora.
A sabedoria de identificar as situações e tratá-las conforme se está preparado, evita mágoas, traz conforto e alegria. Foi o que ela ensinou a seus filhos. Ela sempre soube que um dia seria mãe, apenas não podia prever quando eles chegariam e por isso preparou-se para amar, primeiro a eles, depois a si mesma.
Hoje, depois de um casamento de trinta e cinco anos, dormirá pela primeira vez sozinha em sua cama, em sua casa. E nessa noite, sente a paz que há muito não sentia. A tristeza abateu-a quando seu marido morreu, há dezoito meses. Desde então tem dormido em casa de seus filhos. Não conseguia encarar o fato de que sua cama está vazia a esperar por ela. Que porá apenas um prato na mesa para o almoço e que se não sentir fome, não precisará fazer o jantar. Sua vida novamente se reestruturava e sentia medo. Mas aos poucos foi voltando a viver, a sentir, a fazer parte de um mundo onde está sozinha. E que nem por isso deixou de ser a sua vida, a sua história, sua identidade, como ela costuma dizer.
O luto de uma pessoa deve ser respeitado e sentido, do contrário todos seríamos criaturas capazes de devorar nossos próprios filhos em vez de chorar suas mortes.
Passada essa fase, chega a hora de recomeçar, ou apenas continuar, em alguns casos.
E para essa dona de casa, a vida recomeça do exato ponto onde seus sonhos deram espaço a sua missão natural de gerar e cuidar.
Da porta, seu filho grita: Mãe, amanhã passo para pegá-la às onze horas. As portas lá fecham ao meio-dia e é melhor chegar cedo para evitar o tumulto.
Sua nora sugere à sua neta: Dá boa-noite à vovó, filha.
- Boa-noite, vovó, boa sorte amanhã, no vestibular.