O Escudo de Lúcio
Lúcio era um cara preguiçoso. Amava ler, mas só o que lhe desse na venta. Nunca recomendações de professores sob ameaça de provas. Essas lhe causavam angústia e a cada frase seu cérebro viajava em uma direção diferente. Nem por isso tirava notas ruins. Fosse pela facilidade de colar em avaliações ou pela habilidade em fazer trabalhos escritos, Lúcio quase sempre se saia bem no fim dos períodos. Cursava jornalismo e sua afinidade com as palavras facilitava-lhe a vida boêmia.
Tinha o dom de indignar os professores com sua displicência e déficit de atenção em aulas. Nos colegas provocava grandes gargalhadas. Era uma figura engraçada, de fato. Altamente despudorado e pornográfico, portanto, repleto de amigos pré-adultos, pseudo desapegados dos valores sociais de moral e bons costumes. Seguir convenções de comportamento é démodé demais para futuros jornalistas e cineastas. Cult é ser da pá virada - fumar, beber, transar e jogar Poker, não necessariamente nesta mesma ordem.
Mas isso tudo não passa de uma casca de proteção. Carregar a bandeira do desapego é a melhor saída para não sentir a dor da crítica. “Fiz nas coxas mesmo. Se saiu assim, foi falta de esmero”. Aliás, falta de esmero não, porque esse vocabulário Lúcio só usa em seus textos. Ele é displicente, esqueceu? Mantém um acervo de criações literárias produzidas com todo o capricho para não ser confundido com mais um boçal irresponsável. Afinal, ele não é quem sua fachada pinta e precisa se lembrar disso de vez em quando.
Só que o tempo não tarda a desmontar as guardas falhas e Lúcio agora começa a ser forçado a vencer sua covardia. No ano passado teve um péssimo término de namoro com Aline, menina recatada e esforçada que muito suou para “endireitar” o amado. Pena que por motivos infelizes... Sua própria insegurança e carência a transformaram numa ditadora, e as bebedeiras e noites de Poker enfumaçadas eram como críticas ao seu governo pudico – censuradas e punidas a todo custo.
Lúcio não agüentou ver sua tática de guerra ser contestada continuamente e rompeu com Aline. Vai que ela o convence a vencer seus medos de vez e ele passa a dar a cara a tapas ao invés de enchê-la de cerveja? Aí não ia dar... Mas também não vamos pintar a garota de santa, já que sua “gerência” repressora deixou nosso herói supercult traumatizado. Foi só sair da prisão domiciliar que Lúcio caiu de cara nos prazeres da boréstia. Desde então não vai dormir sóbrio um dia que seja.
Apesar do bar ter se tornado parada obrigatória depois do trabalho, Lúcio não bebe mais por desgosto do término, agora suas frustrações são outras. A oportunidade de ouro que pode ter perdido devido ao trauma pós-Mussoaline é o que o faz chamar o garçom insistentemente. Acontece que há alguns meses, entre uma choppada e outra, conheceu Marina, caloura de publicidade incrivelmente entusiasmada e muito cobiçada na faculdade.
Fora o fato de ser magra, alta e bonita, Marina era a versão feminina de Lúcio. Expansiva, beberrona, faladeira e repleta de colegas risonhos. Logo de cara os dois não se deram lá muito bem. Dizem por aí que dois bicudos não se beijam... Talvez não de primeira, pelo menos. Depois de cortadas algumas arestas e vencidas algumas barreiras estéticas – por parte dela – começaram a se relacionar causalmente. Passado certo tempo, a moça se apaixonou. Foi aí que a coisa complicou para Lúcio.
Desde que a beijou pela primeira vez, sua vida mudara para melhor. A embriaguês de fossa se transformara em curtição ao lado da menina e rendera boas histórias. A amargura pela forma física de barril fora superada – tinha ao seu dispor um alguém que o desejava apesar da pança. Mas nem tudo eram flores, para variar. O maldito escudo de proteção estivera mais forte do que nunca, potencializado pelos danos do namoro anterior. Lúcio se convencera de que posar de insensível seria a melhor maneira de seguir ileso.
Durante os meses em que estiveram juntos, Marina nunca teve chance de impor sua vontade. Tinha medo de deixar que Lúcio escapasse por entre seus dedos caso fosse pressionado. E ele reforçava essa possibilidade quando reclamava do autoritarismo Aline, a quem Marina odiava e tratava com um desprezo quase infantil. A “ex” também não ficava devendo no comportamento e as duas faziam papel de concorrentes a um prêmio precioso, inflando constantemente o ego de Lúcio. Não sei bem o porquê do incômodo de Aline. Esta partira para outra - aliás, várias outras - desde o rompimento.
O problema é que o tempo passa e, mais uma vez tenta ensinar Lúcio a sair do casulo e se deixar sentir. E foi assim que a tal oportunidade de ouro com Marina degringolou. A menina eventualmente cansou de ferir a autoestima na esperança de que Lúcio amolecesse. Cansou de ficar à disposição de quem não estava à sua. Decidiu “abraçar o mundo”, como lhe explicou docemente. E Lúcio então percebeu a asneira que fizera.
Como pôde posar de comandante do relacionamento sabendo da estima que sua amada sentia por ele? Sim, sua amada. Porque após a eminência da perda, Lúcio percebeu que sem ela, melhor não estaria. Percebeu que o medo que sentia de ser controlado e subjugado como fora no passado era infundado. Marina nunca o censurou em suas empreitadas. Sequer condenou o comportamento um tanto quanto autodestrutivo que sustentava no ambiente acadêmico (maldito medo de críticas). Ela esteve ali, lépida e fagueira. Mulher e companheira.
Hoje Marina é amada, mas se vinga e se defende mantendo distância de Lúcio. Não faz um mês ainda que abriu as asas e se afastou do amado. Mas essas semanas estão sendo as mais demoradas na vida de Lúcio. E também as mais entorpecidas. Ainda bem a felicidade não mora em copo de bar ou a AmBev estaria mais rica que a Microsoft e o Lúcio teria desistido de lutar por Marina.
A despedida da menina foi branda e mais soou aos ouvidos de Lúcio como um aviso. Pelo menos é esse o pensamento que o conforta todas as manhãs, quando acorda de ressaca, louco para telefoná-la. Mas não o faz, ela pediu espaço, disse que queria avaliar o que sentia. A verdade é que ela precisa recuperar sua autoestima e cuidar do amor próprio ferido pela frieza fingida de Lúcio. E ele vai dormir todas as noites pensando se algum dia será capaz de corrigir seus erros e se ver livre daquela maldita covardia.