Páginas de Lágrimas

Ela era uma menina com sonhos como outra qualquer. Em proporção que foi entendendo o que se passava à sua volta, temeu cada segundo da sua existência.

Sua família formada por pai, mãe e cinco irmãos, aparentemente unida e cheia de vida eram na realidade pessoas quebradas, dilaceradas e totalmente infelizes. Não conheciam o que significava um verdadeiro lar.

Começou a entender sua triste realidade quando percebeu que sua mãe tinha momentos de loucura. De repente acontecia. Acordava boa, fazendo as tarefas de uma dona de casa, de uma hora para outra, mudava de humor, gritava por qualquer coisa, avançava para cima de quem estivesse mais perto, e como eram os filhos que estavam todos os dias ali bem diante dela, esses eram os primeiros que sofriam os golpes.

No início, a menina percebeu que as crises eram menos freqüentes. Uma ou duas vezes ao ano. Se não tivesse nenhum problema inquietando sua mãe, normalmente as coisas iam bem. Mas depois as crises passaram a aumentar. Ela tentava matar o marido, tentava matar os filhos. Tinha uma enorme capacidade de dizer minuciosamente como iria praticar cada assassinato. Era uma tortura para quem a ouvisse. Imaginem o que se passava na cabeça daquelas crianças.

Decidiu na inocência protegerem-se mutuamente. Como vencer a força do sono, o cansaço, a fome e a sede? O desejo de viver e de proteger às crianças mais novas as ajudava. Acharam uma solução. Agiriam assim:

Uma tinha que ficar de vigia. Essa atrás da porta se acocorava e ali ficava no escuro a espera do vulto que surgiria para tirar-lhes a vida. Caso acontecesse da mãe entrar no quarto a que tivesse de vigia gritava o mais alto que pudesse e as mais velhas acordariam as mais novas e tentavam fugir para longe daqueles braços mortais. Quando percebiam que sua mãe não estava à vista ou ia para o quarto gritar e morder a si mesma, iam até a cozinha e pegavam as facas, garfos, fósforos e os escondiam debaixo do colchão. Tinham que fazer isso sem que ela percebesse, se não... O marido também não tinha sossego. Não podia dormir. Vivia na expectativa de morrer ou ver seus filhos mortos.

Começaram os internamentos. Ninguém podia dizer qual era o mais triste: Ver aquelas vidas serem destruídas gradativamente ou vê-las assistir o triste quadro de sua mãe sair de dentro de casa, amarrada, gritando e espumando, com os olhos esbugalhados num estado de cortar qualquer coração. Choravam, corriam tentando livrar a mãe daqueles homens maus que maltratavam àquela que lhes colocara no mundo. Não percebiam que ela estava doente? Perguntavam-se a si mesmo.Os vizinhos corriam para ajudar pegando as crianças, e as levando para longe. Elas continuavam ouvindo os gritos da mãe que reagia como um animal acuado e era levada para algum lugar onde elas não podiam entrar.

Sabiam que lá ela era medicada e ficava naquele lugar dias e mais dias, dormindo. Levava um tal de eletro choque que a deixaria ¨boa¨assim dizia sua avó. Essa vinha cuidar das crianças durante o dia. A mais velha ficava responsável de cuidar dos outros irmãos até o pai chegar. Depois de quinze dias, um mês ou até mais, dependia da forma que ela reagia ao tratamento, a mãe voltava. Diferente, com jeito de sonâmbula, olhar sem vida, modos lentos, apática, sem vida.Não reconheciam essa nova mulher que aparecia. A menina olhava sem acreditar nesse ser que lhe era estranho.

Os dias iam passando; todos continuando sua vida costumeira; sua mãe despertando. O que temia a menina? Era a nova crise que nunca sabia quando ia acontecer. E quando acontecia era como uma represa que se rompe e sai destruindo tudo à sua volta. Vinha com força total.

Certa vez o pai ainda não tinha chegado do trabalho, sua irmã mais velha estava estudando, era noite quando os sinais apareceram. E a menina teve que correr como nunca imaginou possível. O colégio ficava distante. Os mil e quinhentos metros ela teria que correr como se sua vida e as dos seus irmãos dependessem dela. E era verdade.

Sua irmã que já sabia o que acontecia, quando a viu lívida e sem fôlego, saiu correndo da sala de aula, e sem pedir permissão foi ao encontro de mais uma noite de tormenta. Torcia para que não chegasse tarde demais.

Chegou a tempo. Sua mãe estava em transe, e foi difícil fazê-la ouvir o que sua filha mais velha falava. Pouco a pouco se acalmou e conseguiu tirar a faca que estava apontada para a própria barriga. Ela iria tirar a própria vida.

Outra vez, não se lembra do motivo que a levou àquela barbaridade: Sua mãe fechou as portas da casa, deitou os filhos no chão e começou a beliscar e morder um por um. Eles não podiam correr, nem gritar, pois eram ameaçados. E essa menina para livrar os mais novos usava um artifício: gritava com a mãe, dizia que ela era má, para que toda raiva voltasse para si mesma e assim seus irmãos ficarem livres de tanta violência. Só foram salvos porque um vizinho ouviu uns gemidos sufocados e imaginando o que estava acontecendo, começou a chamar aquela mãe pelo nome, até que ela saísse daquele transe, abrisse a porta e soltasse as crianças.

Saíram dali, inchadas e cheias de hematomas, sem falar nas seqüelas da alma. Feridas e marcas que ninguém pode sondar.

Novamente aquela mulher voltou para a casa de Saúde. Agora as crianças temiam a volta da mãe. Torciam para que ela não voltasse embora um outro sentimento brigasse por um espaço; amavam sua mãe. Aquela mulher que as ameaçava e a qualquer instante poderia matá-los era sua mãe.

Quando menos esperavam, sem que o tratamento tivesse sido completado, ela fugiu e apareceu no meio da noite batendo à porta. Descabelada, transfigurada pedindo para que abrissem, pois ela queria entrar. Embora com medo, confiantes na presença do pai, abriram à porta.

Fazia pena o estado daquela mulher. Falando como criança pedia que não a levassem de volta. Chorando pediu comida e foi cuidada como só quem ama tem a capacidade de fazê-lo

Essa era a vida daquela menina.

Certo dia uma professora pediu que fizessem um texto cujo tema seria: Sou feliz. E aquela menina em voz audível disse: eu não posso fazer esse texto, eu não sei o que é ser feliz. A classe umedeceu, a professora experiente conseguiu de volta o controle da aula e pedindo licença, voltou com uma professora que ficou com sua classe enquanto conversava com aquela aluna e ali pôde ouvir pela primeira vez nos seus trinta anos de magistério um coração infantil dilacerado. Pela primeira vez soube que muitas vezes sua aluna ficou sem comer com medo de sua mãe ter ralado vidro e colocado na comida. Que sua aluna ficava muitas noites de vigia para que sua mãe não matasse seus irmãos e a ela a facadas, as perfurassem com garfos, ou ateasse álcool ou querosene sobre elas e jogasse fogo para que todos morressem queimados.

Consolou como pôde. Ajudou comunicando a diretora e demais professores para que dessem uma mão àquela criança e aos demais irmãos que estudavam naquela escola. Tinham consciência de que não podiam demonstrar à mãe da aluna que sabiam da história, pois pelo modo dela agir já percebia-se um descontrole emocional.

Passou a procurar por sinais na aluna. Sinais de machucados, queimaduras ou algo que aquele olhar infantil pudesse transmitir e no recreio sempre procurava dar uma palavra com ela.

Mas um dia ela não veio, no outro apareceu mancando. A professora a chamou e perguntou o que tinha acontecido e a menina chorando desabafou:

-Ontem estávamos esperando uma visita, e na minha ansiedade fiquei à frente de casa observando a sua chegada. Quando conseguir ter certeza que era a visita que apontava na rua, gritei:

_ Mãe, lá vem dona Maria!

Ela lá de dentro, reclamou por eu estar gritando na rua. Sem esperar uma reação tão agressiva fui até ela e disse:

_ Ôxe, mãe! Eu não gritei. Só disse que dona Maria estava chegando.

_Esse Ôxe mãe, a enfureceu e como estava na máquina de costura, pegou a tesoura e a jogou em minha direção. Eu me abaixei, mas não fui rápida o suficiente e a tesoura rasgou minha coxa.

Com voz suave a professora pediu para ver, depois de olhar para aquela ferida aberta que não foi tratada, abraçando a sua aluna, choraram juntas. Pensava consigo mesmo: Como pode um coração desse tamanho suportar tanta dor? Como essas crianças poderão crescer tendo juízo perfeito e condições mínimas para vencerem na vida se desde pequenas lhes são negados todos os meios e possibilidades de descobrirem valores sólidos e adequados para uma maturidade equilibrada e assim venham se tornar cidadãos?

Tratou da ferida física sem esquecer de tentar minimizar as feridas da alma; fez o que pôde e abraçou aquele corpo e coração frágil e sofrido.

Anos se passaram. A professora perdeu contato com a aluna.

Foi transferida de colégio, mas ficou com o cuidado de sempre receber notícia do seu desenvolvimento e necessidades. Tinha certeza que só um milagre poderia transformar aquele deserto de lágrimas em um oásis de paz.

O tempo passa. Ele corre como águas passadas que não movem moinho. A menina cresceu; se fez moça. Seus irmãos também. Cada um tentou se pegar à vida como um náufrago se agarra a uma tábua na tentativa de não afundar. Nenhum deles perdeu o rumo. Nenhum deles afundou. Com muita dificuldade terminaram os estudos. As duas filhas mais velhas, as que mais tiveram maior contato com as lágrimas: uma é médica dedicada e a outra uma professora que dá a vida pelos seus alunos. Os outros mais novos, não concluíram os estudos, mas estão casados e têm família equilibrada e são felizes. Quanto à sua mãe, ainda é viva. Poucas são as lembranças por parte dela. Os filhos procuram deixar o passado no passado. Tratam sua mãe com o amor e o carinho que ela merece receber. Torcem para que ela chegue aos cem anos. E a menina que tocou o coração da professora tomou uma sábia decisão: dedicou-se aos estudos para aprender como tocar vidas em pedaços, tornando-se uma psicóloga.

Alguém pode se perguntar: Essa mãe tão má merecia que os filhos a esquecessem ou quem sabe, terminasse seus dias num sanatório! Antes de terminar essa narração, quero convidar você para acompanhar a próxima história. Nela narrarei um pouco da vida dessa mulher que a primeira vista merece ser rejeitada. Entretanto, descobriremos que ela como tantas outras que estão por ai, são vítimas e não algozes.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 13/02/2009
Código do texto: T1437200
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