Construindo em meios às ruínas

O dia amanheceu e havia uma expectativa no ar. Ou será que só eu sentia aquela inquietação, um desassossego, uma sensação de que algo estava para acontecer?

Fui até o curral, observei meu esposo tirando leite da Mimosa, ri comigo mesmo. A idéia de que agora eu era uma senhora casada, me fez repensar toda a minha história em poucos segundos.

Conheci o Manoel quando ainda era menina, todo o tempo esteve ele com meus irmãos tomando banho de açude lá na Fazenda do Ribeirão; levando o rebanho para pastar ou brincando de bola de gude em frente ao quintal de terra batida.

. Nessa época já nos assustava a seca e eu, embora pequena, percebia que meu pai falando baixo com minha mãe, dizia que as coisas iam de mal a pior. Caso a seca se prolongasse, e o doutor Genival, o dono da fazenda, proibisse o povo de pegar água no açude, a coisa ia ficar um Deus nos acuda. O jeito era apelar para o céu, se não...

A criação cada fez mais magra, e a criançada cada vez mais barriguda. Era que a água que o povo pegava era a mesma água que os bichos tomavam banho, defecavam, urinavam. Água parada, esverdeada, onde os sapos faziam à festa e cada vez era esse o único meio de matarmos a sede. Os carros pipas enviados pela prefeitura não davam conta para assistir toda população e mal a gente chegava com as latas, já havia uma multidão à nossa frente. Muitas vezes voltávamos com as latas vazias e com mais sede ainda. O jeito era mastigar raiz de mato ou folha para salivar um pouquinho e assim enganar a sede.

Foi nessa vida de sertão da Paraíba que cresci tendo o Manoel sempre presente, sofrendo as mesmas privações e vivenciando as mesmas alegrias. Não sei dizer como tudo começou, só sei dizer que numa conversa de fim de tarde, sentados num tronco de árvore seca, deitada à entrada da varanda que o sentimento surgiu e decidimos juntar os trapos. Tinha 12 anos, ele 16. Para muitos éramos criança, mas nossa estrada já era bem

vivida, e sabíamos o que queríamos. Muito pouco era nosso sonho: uma casa de barro, uma lavoura e um pequeno rebanho; um pedaço de terra onde ninguém nos mandasse sair, um riacho que não secasse. O resto tínhamos de sobra, pois Deus nos tinha dado, força e coragem para trabalhar.

De todos os animais tínhamos um cuidado maior com a Mimosa, não que quiséssemos o mal dos outros, mas é que ela nos dava o precioso leite que fazíamos queijo e vendíamos na feira. Mas sabíamos que um dia teríamos que nos desfazer da vaca, pois a cada dia tava mais difícil sustentá-la.

Com 13 anos casei. Fiquei logo grávida, mas não deixei de trabalhar. Ajudava como podia e fiquei de pé até a hora de parir. A seca se estendia. Os animais morrendo. O povo apelando para tudo que é santo.

Não estávamos ainda em situação muito ruim porque meu pai prestava serviço na Fazenda e o doutor nos deixava continuar pegando alguma coisa que sobrava da sua farta mesa. Era um homem bom, mas que não tinha como sustentar todos os sedentos e famintos da região.

Tive mais dois filhos, um atrás do outro. Continuava a mesma cabocla de sempre: alta, forte, sem ter medo da vida. Nasci pra vencer, pois meu pai e minha mãe verdadeiros guerreiros, criavam os filhos assim e prosseguíamos nas mesmas pisadas.

A fome aumentou. O açude estava secando. Nem sinal de chuva. Na Fazenda já se falava em fechar as portas, despedir os empregados e desfazer-se dos animais, antes que o prejuízo fosse maior. Meu pai estremeceu com a notícia. Precavido que era, saiu para sentir o ambiente, o lugar pra se saber das coisas era na feira e foi ali que ele ouviu os mais velhos dizerem que seca como aquela nunca fora vista e que as perdas eram demais. Uma leva de retirante chegava oferecendo qualquer coisa por uma bagatela esperando, com uns trocados, poder levar um punhado de farinha com um pedaço de charque para sustentar a família durante a semana. Os donos dos mercados já não vendiam fiado. As barracas da feira cada vez mais vazias de mercadoria e sem cliente para comprar.

Meu pai voltou desolado e com uma decisão tomada. Iria escrever para um tio na cidade de Olinda e lá, se ele os socorresse, iriam recomeçar a vida. Seria socorro mesmo, porque era meu pai, minha mãe, meus dois irmãos, eu, meu esposo, meus três filhos. Nove bocas para dar de comida até que pudéssemos ganhar o pão novamente, já que de cidade grande não entendíamos nada.

Esperamos com ansiedade a resposta que um mês depois chegou tirando um peso das nossas costas: é que temíamos que ele não nos atendesse. Meu pai já estava desempregado há quinze dias. Meu marido ainda fazia uns bicos. Vendemos tudo e saímos com lágrimas escorrendo, pois estávamos deixando nossa terra, nosso céu, nossa gente. Partíamos não querendo, mas precisando porque a fome e a sede são doloridas. Só quem sabe é quem já sentiu na pele.

Chegamos a Olinda, fomos para um lugar chamado Santa, e lá meu tio arranjou um lugar onde íriamos ficar, emprego para meu pai e para meu marido. Meu tio era dono de uma olaria, e era de lá que saia nosso pão de cada dia.

Engraçado é que aqui não tem seca. Tudo é verde. Há muita água. Conseguimos até plantar um pequeno roçado. Todos tomamos corpo, e já a miséria estava numa esquina pra trás.

Conhecemos o mar, fomos até a cidade do Recife, e nos assustamos com a multidão de gente que encontramos. As roupas velhas foram trocadas, aprendemos a andar de calçado, aprendemos a falar melhor. Coloquei meus filhos na escola, depois fui também aprender as letras. A gente nunca sabe o dia de amanhã...

Meu marido saiu cedo e foi para o vulcão. Naquele dia tinha que tirar muito barro, pois havia encomenda grande e a produção aumentando,aumentava também o salário. Como todo dia, ele desceu e entrou no vulcão sempre cavando mais e mais, despreocupado, e cantarolando uma canção. Disseram que algumas vezes ele chegou a subir, jogava água sobre o corpo suado, descansava um pouco e descia de novo. No momento do desastre, estava em casa, e senti um aperto no peito. Igual àquela inquietação que senti lá na Paraíba. Uma inquietação doída e um desassossego. Nesse momento, todo o barro se fechou sobre meu marido que não teve tempo de correr. Cavaram rapidamente, mas era muito barro. Muita gritaria e uma carreira daquelas, mas quando chegaram até onde estava meu esposo, ele já não vivia. Morreu soterrado.

Não lembro quem veio trazer a notícia, só sei que estava na cozinha preparando o café da noite, quando meu pai se aproximou cabisbaixo e me mandou sentar. Percebi que a coisa era feia:

_ Filha, vou lhe dar uma notícia muito ruim, mas é melhor que seja eu, do que outro. Foi quando percebi que minha mãe estava na sala abafando o choro com uma toalha sobre o rosto. Meus filhos com os olhos arregalados sem entender nada. Meu pai com os olhos vermelhos, engolindo em seco soltou as palavras mais duras que ouvi e tive que fazer das tripas coração para ali diante dos meus filhos, não desabar.

_ Manoel está morto. O vulcão fechou com ele dentro.

Não!!!! Gritava meu coração em pedaços. Não! Meu Manoel estava vivo ainda a pouco. Almoçou em casa, deu um abraço nos filhos, e de longe, voltou-se e me deu aquele adeus costumeiro, antes de se perder de vista. Manoel, que trabalhava cantando e era cantando que entrava em casa, sempre com aquele rosto sereno na certeza de que tudo estava bem. Mas eu tinha que prosseguir. Enterro, à volta pra casa, os filhos agarrados à minha saia. Guardei minha dor e fui à luta.

Eu tinha 26 anos, o filho mais velho com doze anos, um com seis, e, o caçula com 2 anos. Na época não tinha salário de viúva, nem meu tio foi responsabilizado e de sua parte a ajuda foi pouca. Lavei roupa de ganho, criei galinha, continuei no roçado para alimentar meus filhos.

Segui em frente. O tempo foi curando a dor. Reaprendi a sonhar.

Conheci um rapaz que se interessou por mim. No início não queria, mas meus pais me aconselharam a dar uma chance ao coração. Aceitei ouvir o rapaz e percebi que era um moço direito, trabalhador. Muito calmo, de pequena estatura, caseiro e já tendo 30 anos, continuava solteiro por ser muito tímido. Passamos a conversar a afeição foi nascendo e decidimos casar. Ele recebeu meus filhos como se fosse deles, registrou todos hes dando seu nome; com esse novo esposo tive mais quatro filhos, um morreu ainda pequeno e os outros cresceram fortes e sadios. Dei tudo de mim para que meus filhos fossem homens do bem. Não pude dar-lhes estudo, mas mesmo na pobreza os ensinei a serem limpos, ordeiros, trabalhadores e honestos. Mostrei-lhes que deveriam sempre respeitar os mais velhos, amar e cuidar dos mais fracos, zelar pela família, e nunca esquecer que há Alguém acima de tudo e de todos e esse Alguém se chama Deus. Sempre fiz questão de mostra-lhes que se não fosse Deus eu não teria tido forças para vencer as batalhas; sem a minha família eu não teria condições de ter cuidar deles e que se tem uma coisa nesse mundo que deixa o homem pobre, essa coisa se chama preguiça.

Ensinei a todos os meus filhos a cozinhar, lavar e passar roupa, limpar uma casa, costurar e cuidar uns dos outros.

Sei que um dia não estarei mais aqui. Assim, espero ter concluído a minha missão, ensinando-os a viver.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 13/02/2009
Código do texto: T1437175
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