POLÍTICA DE BOA VIZINHANÇA
Era mulher para desencaminhar qualquer mortal. A carne é fraca, meu amigo, você sabe como é. Morena escultural, representante maior do que chamamos “beleza feminina”, atiçou meus instintos. Casado havia seis meses, começava a apresentar indícios da doença, sim, essa mesmo: “cobicite aguda de mulher alheia”. Nunca foi vitimado por tal moléstia? Cuidado camarada, é uma endemia, não há vacina, quando menos se espera ela te pega. Eis seus sintomas: vontade permanente de olhar o objeto de cobiça, vontade insaciável de estar na presença desse objeto e desejo desenfreado de possuí-lo. Esse era meu caso, mas com alguns agravantes. Meu objeto de cobiça estava por demais próximo de mim, precisamente no quintal ao lado, morava ali há pouco tempo, era casada e eu nem ligava para esse fato. Minha preocupação maior estava em traçar uma estratégia de conquista.
Tratei de travar amizade com meu vizinho. Se eu queria o mel, devia primeiro agradar ao zangão. Assim, começamos a troca de amabilidades. Era uma furadeira e uma escada emprestadas daqui; um macaco e uma chave de roda de lá, ate chegarmos ao nível de pescaria conjunta nos finais de semana. Nossas esposas também entraram na brincadeira, a seu modo, claro, com conversas por cima do muro, chimarrão com pipoca toda tarde e empréstimos de revistas. Iniciou-se aí uma relação muito íntima entre nós.
Estava adorando aquilo de ver patroa de meu novo amigo quase todo dia em minha casa. Olhando bem, reparei que ela era mais bonita do que eu imaginava. Aquilo só fazia crescer a volúpia que me consumia. Sorte minha foi nunca ter deixado transparecer o mínimo sinal de doença quando estávamos reunidos os quatro, seria muito perigoso se isso ocorresse. Sozinho, só pensava naquela obra-prima de formosura e em como conseguí-la. Devia esperar momento apropriado para insinuar-lhe minhas intenções ou deixar que ela tomasse a iniciativa? Da parte dela nada ocorreu, nem da minha, e hoje vejo que foi melhor assim.
A motivação para buscar a cura do mal que me acometia veio de um pesadelo medonho: estava eu em um julgamento, dele tomava parte como juiz. O réu, sentado diante de mim, mantinha a cabeça baixa, era impossível ver seu rosto. No corpo de jurados, todos possuíam a face de minha vizinha e, dedos em riste, apontavam para o acusado, juntamente como o juiz que proclamava a terrível sentença: “cobiças a mulher do próximo, declaro-te culpado”.
Depois daquilo, resolvi mudar de conduta e dei inicio a alguns sacrifícios para livrar-me da doença. Comecei por refletir sobre o que eu andava fazendo. Desejar a mulher alheia. Que maluquice! Eu era um traste. Pobre vizinho, quantas pescarias fizemos juntos, até dinheiro havia me emprestado. Os churrascos domingueiros aqui em casa, a carne por sua conta. Era assim que lhe prestava agradecimentos? E minha esposa, merecia aquilo? Estava decidido, iria tomar o melhor dos remédios para essa doença: vergonha na cara, e faria por merecer a mulher que eu tinha.
Para maior eficácia do tratamento, agora evitava ao máximo manter relações com meus vizinhos. Temia uma recaída. Nessa medida, devo reconhecer, fui ajudado pelo acaso. Um belo dia descobri o casal havia carregado a mudança na noite anterior e ido não sei pra onde. Daí em diante, passei a dedicar mais tempo a minha mulher, principalmente quando soube da sua gravidez.
Hoje, sou outro homem. Totalmente curado da “cobicite”, não desejo esse distúrbio a ninguém. Não fosse o tratamento de choque que sofri, talvez a doença ainda me acompanhasse.
Vez ou outra sou pego lembrando o casal que morava aqui ao lado. Sinto saudades, sobretudo da amizade de meu vizinho. “Ele era tão bom”, comenta minha esposa. Se quiser vê-lo, nem preciso sair, basta olhar meu filho. É a cara do pai.