DUAS TRISTEZAS

Helena resolveu que não queria mais sofrer. Respirou fundo, olhou o relógio e viu que a madrugada avançava. Decidiu que não iria dormir. Não enquanto não desse um jeito na tristeza, que lhe comia o fígado dia após dia.

Ligou a tevê. Um melodrama americano em preto e branco iluminou a sala.

Helena chorou pelo drama da mocinha. E pelo seu próprio.

O filme terminou.

E as horas começavam a chamar o sol.

Ouviu o som do carro entrando na garagem. Nem olhou o relógio. Era tarde demais e ela sabia disso.

Respirou fundo e viu Apolônio entrando na casa. Ele a olhou como quem olha para um gato dormindo. Nada disse, nada expressou. Tomou o rumo do quarto e tirou a roupa. Enrolado na toalha, foi até a cozinha, abriu a geladeira, comeu um pedaço de bolo.

Helena era um gato dormindo no sofá da sala. E pensava por que razão ele já nem justificava a demora, a fuga, o desprezo, a traição. Teria ficado feia? Teria envelhecido?

Helena lembrou que, numa tarde dessas, passeando pelo centro com uma amiga, recebeu uma cantada de um homem jovem e bonito. E ela lembrou que se sentiu assim, jovem e bonita, e que sua amiga riu e a chamou de poderosa. Será que ela não tinha mais poderes? Não podia mais seduzir o próprio marido?

Apolônio olhou para Helena, ao rumar para o quarto. Nada disse. Deitou-se na cama e fechou os olhos. Por um segundo, lembrou do sorriso de Adele. Tão jovem e tão louca, Adele o dominava.

Sentiu vontade de chamar Helena. Teve pena dela, uma prisioneira de rígidos princípios morais. Não poderia entender que os acidentes da vida acontecem.

Helena foi até a cozinha.

Apolônio não tinha a mínima misericórdia? Podia ao menos inventar uma mentira, dizer que estava em uma reunião. Ou tinha saído com os amigos. Uma única mentira e Helena saberia que, pelo menos, na falta do amor, havia um pouco de consideração.

Helena há dias vinha monitorando os passos de Apolônio. Leu umas mensagens no celular, ligou para números suspeitos, passou a analisar os gestos de seu marido. Sabia que, na firma, não havia nenhuma Adele. Sabia que ela sempre ligava. E houve uma vez que Apolônio esqueceu de apagar uma mensagem no celular: “quero ver você saudades”.

Helena ardia por dentro. Pensou em sua dor, seu medo, sua vergonha. Não suportou a tensão: vomitou na pia da cozinha. Quase desmaiou.

E Apolônio no quarto, quase dormindo, cansado de tanto prazer, de tanto sexo irresponsável.

Precisava lavar o vômito, Helena pensou. Pôs água para ferver e foi até o quarto. Apolônio já dormia. E já sonhava com os seios túrgidos de Adele. As coxas grossas de Adele. Aquela boca insaciável. Aquele triângulo mimoso. Sonhava. Sonhava.

A água já fervia, quando Helena lembrou que havia decidido não mais sofrer. Não sentiria mais tristeza. Não sentiria mais desprezo por si mesma. Não teria mais vergonha de falar sobre o seu casamento nas reuniões da igreja. O pastor entenderia o seu gesto. O coral aceitaria as suas justificativas. Tudo seria melhor a partir daquela hora.

A água fervia.

Os gritos de Apolônio acordaram a vizinhança. A manhã surgiu imersa em espanto e comentários. Todos diziam que Helena havia enlouquecido.

O pastor foi visitar Helena na cadeia. Havia várias outras mulheres na cela, umas velhas, outras gordas, dentes pretos de sujeira, cabelos desgrenhados. Estranhamente Helena parecia nívea. Um lírio no lodo. Um facho de luz em meio às trevas. Seu rosto tranqüilo contrastava com a sordidez do ambiente.

Ao ver o pastor, Helena gritou que estava livre.

O pastor disse que Apolônio estava entre a vida e a morte.

Helena sorriu, e disse que ainda estava viva.