Morte no Asfalto

Wilson estava indo para o escritório, era um dia comum de trabalho, uma quarta-feira, quente, muito quente e na rua as pessoas pareciam angustiadas, meio atormentadas por causa de tão intenso calor.

Parou na calçada esperou o sinal de trânsito abrir para pedestres e percebeu que ele encontrava-se todo escuro, apagado. Sempre acontecia ali, naquele quarteirão, falhas constantes e isso sempre o deixava preocupado, - “num trânsito daqueles, facilmente poderia acontecer sérios acidentes” - , pensava Wilson.

Havia muitos carros parados, motoristas com nervos a flor da pele, pessoas que iam e viam apressadas esbarrando vez ou outra umas nas outras, e o sol que decididamente tinha se aproximado bastante para saudar a todos com seu forte calor.

Wilson busca pelas horas em seu relógio de pulso e percebe que já está um pouco atrasado para uma grande apresentação a potenciais investidores do seu projeto no qual vem trabalhando arduamente durante muito tempo e então acelera o passo, desatento a travessia da avenida. Caminhava aceleradamente preso em seus pensamentos, - “Não posso deixar escapar tamanha oportunidade, terei logo em breve a chance de mostrar ao mundo o trabalho de uma vida, de minha vida!”.

Muitas buzinas e motoristas em seus dias de fúria, e Wilson não deixou de perceber que a uma curta distância, já quase a uns dois e meio, vinha uma motocicleta desgovernada, veloz, em sua direção e de um impulso só saltou para o lado, rolando no afasto da avenida espalhando todos seus documentos de sua tão importante apresentação.

A motocicleta passara por um triz de atropelar Wilson e terminou por chocar-se com um fiat que estava parado logo após a faixa de pedestre, também preso no engarrafamento. Com a pancada o motoqueiro rolou sobre o capô do automóvel e foi lançado por sobre um hidrante do lado direito da via, batendo com tamanha força que ouviu-se um forte estalo, sêco, de alguma coisa forte se quebrando, terminado sua trajetória caindo sem movimentos na sarjeta da avenida.

A pancada na traseira do Fiat fora forte o bastante para que todo o lado direito da traseira do carro tenha se tornado ferro-velho retorcido. O homem que desceu do automóvel trazia consigo uma barra de ferro na mão direita, que parecia ser um daqueles dispositivos de segurança que se prende na direção do carro, e um olhar furioso e vociferando ele disse: “Seu I M B É C I L !!!”, quando viu estupefato o que sobrou da traseira do seu veículo, “Vou matar você, seu FILHO D’UMA PUUUUTA!”

Tudo isto ocorrera numa fração de minutos, e Wilson já se recompondo da queda, do susto e sentindo a adrenalina ainda correr-lhe ferozmente, assombrado como aquilo acontecera tão rápido, viu ainda com os sentidos borrados um homem de estatura mediana, de aproximadamente 1,79m, porém de bastante vigor físico, sair do carro com uma barra de ferro na mão e furioso indo na direção do motoqueiro acidentado jogado na sarjeta, espalhafatado como um espantalho surrado que jaz descartado pôr não mais ter utilidade em sua função bizarra, o homem parecia disposto a cobrar um preço bem mais alto ao motoqueiro do que o prejuízo que ele cometera.

Então, Wilson lançando mão de sua dor e ainda desorientado, ficou em pé e avançou em direção ao homem, até então as pessoas transitavam indiferente ao acidente e a situação inóspita que ali se germinava, e segurando o braço trêmulo porém determinado do homem, Wilson pede calma, “por favor homem, tenha calma, tenha calma”.

Uma senhora, já de idade um pouco avançada, seguiu em direção ao motoqueiro e dando-se pôr perceber, viu uma poça de sangue que já se formava ao redor do capacete do homem estirado ali no chão, ela começou a gritar agitadamente pedindo por socorro. “Alguém pelo amor de Deus, por favor …Socorro, este homem esta morrendo … “, gritava angustiada, “.. consigam socorro .. S O C O R R O O O”.

Ao lado, o homem gritava para Wilson que o soltasse, agitando o braço, de olhos esbugalhados, empurrando-lhe e o maldizendo. Mas Wilson, homem de maior estatura e de domínio maior sobre a força, imobiliza o homem e num tom pacífico pede-lhe calma e o diz: “O homem esta desmaiado não percebe? Vais bater num homem sem sentidos?”, e foi afrouxando aos poucos o laço que tinha aplicado no pescoço do homem em fúria. Começara a sentir as dores no pé direito, pulsando como um coração agitado, Wilson percebeu que tinha quebrado algo ali, também, pois sentia dor em outras partes do corpo.

O Trânsito que era caótico, ficara pior com o acontecido, deixando apenas uma faixa da via livre, e pela quantidade de curiosos que ali começava a surgir, dava para perceber que logo tudo aquilo iria parar. Notava-se que os humores das pessoas ficavam cada vez mais sensíveis, esvaiam-se com uma certa facilidade e o calor estava realmente terrível naqueles dias.

Wilson larga o braço do homem que então percebia a gravidade da situação do motoqueiro e deixara de lado a idéia de “cobrar o prejuízo com pancadas” e logo tratou de se disponibilizar para ajudar a tirar o capacete daquele homem. Já havia um pequeno aglomerado de curiosos e a velha senhora se articulava por entre eles pedindo que ligassem de seus celulares solicitando uma ambulância.

Wilson viu logo ao retirar o capacete do motoqueiro que ele tinha o olho direito muito inchado e roxo e que estava desmaiado mas ainda não morto. Preso na borda inferior do capacete, na altura do lábio inferior, Wilson constatou que era um dente que com o impacto se soltou da boca do motoqueiro. Viu sangue saindo do ouvido direito do motoqueiro e para Wilson aquilo parecia um péssimo sinal. Ao levantar um pouco mais a cabeça do motoqueiro, percebeu que havia uma abertura fina porém comprida na parte de cima da nuca e se estendendo para baixo.

Alguém na pequena multidão formada e que não parava de crescer, gritava que o socorro já fora pedido e que uma ambulância estava sendo providenciada, mas Wilson sabia que não havia maneira de chegar uma ambulância ali, não naquele trânsito e que também não teriam como locomover o motoqueiro dali para um hospital.

Cada vez mais curiosos se aproximavam, “aquela cena despendia algum tipo de sentimento primitivo, austero.”, pensava Wilson.

Pessoas se acumulando para contemplar o bizarro, aquele sujeito moribundo, desfalecido, com a parte direita de sua face coberta de sangue, e aquela senhora ainda agitada gritava por socorro, mas já percebendo que nada daquilo teria alguma utilidade de fato.

Nada pôde ser feito, pessoas cada vez mais próximas olhando. Wilson então se senta ao lado do motoqueiro no asfalto quente, percebendo a descompassada respiração daquele homem morrendo rapidamente em sua frente, debaixo daquele sol escaldante, tomado pela impotência e a incapacidade de ajudar aquele pobre homem, nada pode ser feito. Ouve mulheres gritando por socorro, outras se juntaram a velha senhora e juntas soavam como um coro mal ensaiado. De repente o motoqueiro começa a ter espasmo involuntários e se debater, o homem do automóvel se adianta a proteger a cabeça do motoqueiro para que esta não agrave o ferimento ainda mais. FRED! grita em direção do motoqueiro, Wilson. O nome dele é Fred, “segure a cabeça de Fred com firmeza homem”, grita Wilson.

O motoqueiro tinha sobre a jaqueta que vestia, um crachá da empresa que trabalhava e lá estava disposto o nome dele. Um pouco mais ao lado estava a carteira de Fred, que voara de seu bolso quando este se chocou com o automóvel parado logo ao lado. Wilson pegou a carteira de Fred e na identidade viu que Fred tinha nascido em 74 e pensou: “Quantos anos ele têm?, meu Deus que diferença faz a idade deste homem se ele está morrendo neste momento?”. E de fato Fred estava morrendo.

“Fred deve ter sofrido um traumatismo craniano, da para ver a olhos nus a massa cinzenta sendo expulsa da nuca dele. O cérebro deve está submerso em sangue.”, sentenciou Wilson. “Ainda posso arriscar dizer que a fissura tem uns 7cm de comprimento.”, finaliza Wilson seu pensamento.

Ali realmente estava um inferno, os automóveis haviam parado totalmente, muitos motoristas desceram do seus carros, curiosos. Crianças aos berros se juntavam ao coro desordenado de senhoras pedindo socorro, outros mergulhavam seus rostos encharcados de lágrimas pôr entre as mãos por não aguentar a cena que ali se desenrolava. O homem do automóvel e Wilson seguravam a cabeça e as pernas de Fred que se debatiam incontrolavelmente e com uma violência aterradora.

Não se passa um minuto, mas para Wilson e para o homem do Fiat parecia ter passado um eternidade quando junto a tudo, os gritos dos curiosos, os choros das crianças e os desesperados gritos de socorro das senhoras, Fred emana um terrível e estridente grito definitivo, final, e ali sua vida se encerra no asfalto quente, numa quarta-feira comum de trabalho, nas mãos de desconhecidos, servindo de personagem principal a uma platéia emocionada, entusiasmada com a vulgaridade da morte no cotidiano.