Anjo Amadurecido
Havia 18 anos que trabalhava como médico residente no hospital da universidade. Fazia pesquisas sobre o câncer oncológico infantil, uma área pouco explorada, mas que me fascinava. Formei-me moço e com grandes perspectivas de trabalho. Aos 22 anos já estava nos EUA fazendo residência em Boston, berço do que há de mais moderno na oncologia mundial. Estávamos nos anos 60 e o mundo estava em efervescência. Os Beatles estavam surgindo, a minissaia estava na moda e meus olhos se enchiam com tantas novidades. Apesar do Brasil ser meu país, minha área era para medicina como o divórcio era para o direito.
Em todos os hospitais havia uma grande necessidade de médicos, e certas especialidades como cardiologia, oncologia e pediatria neonatal eram realmente carentes de profissionais.
Meu maior sonho era tornar-me um nome conhecido e respeitado nos EUA e voltar oa Brasil e por em prática o que podesse.
Apesar de ser novo, era muito perspicaz e aprendi rapidamente as técnicas de cirurgia. Tinha aulas com professores-cirugiões que viam da Europa oriental, China e da antiga Rússia.
Toda tarde, entre 14 e 16h fazia minha ronda pela pediatria. Era uma pessoa conhecida, todos me chamavam de Dr. Brasil, apesar de meu nome não ser esse, er o único brasileiro no hospital; então, deixava assim mesmo.
Um dia, estava dormindo um pouco e fui chamado às pressas por uma enfermeira. Havia chegado de um lugarejo longíncuo de Boston, uma menina de 8 anos, com grandes fissuras e precisava de cirurgia com urgência. Fui correndo e entrei na sala de cirurgia. Todo procedimento durou nada menos que 7 horas.
Nas próximas 24h tudo era muito delicado e decisivo, aquele era sem dúvida, meu caso mais complexo até aquele dia. A mãe da menina, que se chamava Darphine, veio até meu consultório e disse, em tom dramático e já até de conformismo:
- Sei que o Sr. é o melho médico da especialidade, aqui em Boston. Sei também que não há distinção entre pobres como nós e pessoas ricas, visto que é da universidade.
Deu uma pausa e continuar, dessa vez, olahndo fundo nos meu olhos:
- Mas, seja sincero como seria com sua mãe, minha pequena vai morrer, não vai?
Olhei firme para aquela mulher simples e forte e disse:
- Senhora, pode ficar certa que fiz com minah equipe o que foi possível por sua filha. Agora, esperamos que Deus e o organismo dela faça a parte que falta.
Ela olhou bem firme, me abraçou e saiu corredor afora.
No outro dia, quando estava na ronda, passei primeiro pra ver todos os pacientes e deixei a pequena Darphine por último. Precisava ver com calma e avaliar com cuidado aquela menininha. De certa forma, ela me comoveu...até agora, não sabia o porquê.
Entrei pé ante pé na UTI infantil "Rosalin Roosevelt", e pude senti o corar no rosto da nefermeira de plantão.
- Como ela está?
- O Sr. não vai acreditar, depois de tantas horas de cirurgia, ela está muito bem. Seus sinais vitais estão normais.
- Que bom!
Nas próximas horas, ratamos de removê-la pra um quarto e passou a receber o tratamento de quimioterapia recomendado.
Os dias foram passando e ela se recuperava a olhos vistos. Aos poucos a pequena aflorava em nós, o amor de sua alma, uma suavidade e tranquilidade que jamais vimos numa criança.
Sempre que a enfermeira prearava o esclapo para aplicar a quimioterapia, ela dizia, com ar de alegria incomum:
- Pode colocar, enfermeira, não tenho medo, pode colocar. Sei que é para o meu bem.
Essas coisas que falava nos dixava atônitos. A fé e a alta espititualidade dela eram inatas, únicas.
Quando chegava uma criança nova no hospital, ela sempre pedia pra vê-la, com a intenção de dar as boas vindas, dizer que todas as enfermeiras eram boas, lindas e coisa e tal. Era impressionante.
Por 2 longos anos de tratamentos os mais diversos, hospitais, exames,manipulações, injeções e todos os desconfortos trazidos pelosprogramas de quimioterapias e radioterapia.
Mas nunca aquela menina fraquejar. Já a vi chorar sim, muitas vezes, mas não via fraqueza em seu choro. Via medo em seus olhinhos algumas vezes, e isto é humano! Mas via confiança e determinação. Ela entregava o bracinho à enfermeira e com uma lágrima nos olhos dizia sua frase mais conhecida:
-faça tia, é preciso para eu ficar boa.
Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei a menina sozinha no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.
Darphine respondeu:
- Tio, às vezes minha mãe sai do quarto para chorar
escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer, tio.
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem seus heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei:
- E o que a morte representa para você, minha querida?
- Olha tio, quando somos pequenos, às vezes, vamos dormir na cama do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em nossa própria cama não é?
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece -continuou ela - Quando nós dormimos,
nosso pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa
cama, não é?
- É isso mesmo querida, você é muito esperta!
- Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou dormir e o meu
Pai do Céu vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!
Até aquele momento não sabia o significado da palavra "sem graça" em minha pele, mas aquele pequena me fez sentir um grão de areia, um nada, diante de tanta espitualidade inata, de tanta verdade... Boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado com
o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento acelerou, fiquei parado,sem ação. Ela continuo:
- E minha mãe vai ficar com muita saudade minha.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço,perguntei a ela:
- E o que saudade significa para você, minha querida?
- Não sabe não, tio? Saudade é o amor que fica!
Hoje, ensino aos alunos da faculdade de medicina a "ver" nos olhos dos pacientes algo mais que um ser humano doente, espero que vejam "anjos" que partirão ao encontro do Pai e têm muito a nos ensinar.