TEMPESTADE
TEMPESTADE
Soprava vento, e chuva diluviana precipitava-se energicamente. As estrelas e lua, assustadas pelas fortes trovoadas, esconder-se-iam por trás das nuvens, sendo que o sol da noite aqui ou ali espreitaria trémulo de medo. Seu propósito seria avisar as suas filhotas que, de tão assustadas, luziam palidamente, no etéreo. Nem ave nocturna nem mamífero algum sairiam das suas casas ou abrigos, para na calada da noite exercerem a actividade predadora. Apenas alguns moluscos ou répteis ousariam afrontar as forças da natureza. Alguns cães mais ousados ou intimidados, uivariam, ecoando as suas vozes guturais, cruzando-as nos ares com o estridente trovão, como que a medir meças. Ao alvorecer do dia, o sol, timidamente, saudava com atitude cívica, as alimárias. As aves seriam os primeiros a responder na esperança de que o novo dia lhes trouxesse a tranquilidade necessária. E fá-lo-iam em uníssonos gorjeios de felicidade. O astro rei seguiria lento o percurso, atrapalhado aqui ou ali por algumas nuvens que teimavam em ir embora. Subitamente, um turbilhão de ventos se levantou e as aves menos prevenidas ou mais corajosas seriam empurradas pela sua força, planando contra vontade umas, e outras, as maiores, gozando os prazeres lá nas alturas, desafiando-o e rindo da fragilidade das árvores que uma a uma tombavam inertes sobre caminhos, estradas, valados, ribeiros ou ainda sobre a cama que haviam preparado antecipadamente com a queda da folha que a seus pés jazia, como que aguardando este momento de descanso eterno. Ao homem, restava-lhe a coragem de por trás da vidraça espreitar a diabólica força da natureza que desabrida batia janelas e portas encurralando de medo o animal mais perfeito que a terra conhece. Como se não bastasse, uma saraivada abater-se-ia de repente e copiosamente, fustigando as orelhas das árvores que teimaram resistir ao ciclone que quase as despiriam de baixo a cima. Ao fundo, aproximando-se em velocidade vertiginosa e empurrada por vómitos de ventos, nuvens negras escureceram o dia, subestimando o astro rei, envergonhando-o e empalidecendo-o do seu brilho, reduzindo-o a uma ténue lumieira de presença, quase imperceptível. Lá longe, uma teia de faíscas abatia-se copiosamente nas encostas das montanhas, onde pastoreavam ovelhas, cabras e vacas que os pastores “abandonaram” livremente logo que o Outono se instalou, até ao alvorecer da Primavera, num processo de transumância com raízes ancestrais na arte do pastoreio. Indiferentes ao perigo, menos as vacas que, prevenidamente, se abrigavam debaixo de árvores ou nos flancos da penedia, as ovelhas e cabras desafiavam a tempestade, sendo que os mais jovens filhotes cabriolavam de felicidade, ignorando ou subestimando o poder da natureza. No mar, o cenário de medo e perigos não eram menores. A planura de águas, esvaziada de homens e barcos mais transmitia esse sentimento, a que só os peixes não poderiam escapar. As ondas empinavam-se pelas penedias marginais, sovando os mexilhões, lapas e percebes, que indefesos se agarravam aos penedos como crianças, à saia da mãe. Lá longe, as trovoadas rugiam, amedrontando os seres marinhos e não raramente, faíscas cortavam a água até à profundidade marinha. Na costa, os barcos baloiçavam freneticamente, ancorados por grossas cordas a pontos fixos em terra. Em terra, as gaivotas agregavam-se à espera de melhores horas ou dias. Entretanto, aproximava-se o final da tarde, ainda que duas horas diurnas faltassem percorrer até que a noite se fizesse presença. A poente, um luzeiro de sol furava as ténues nuvens que se fragilizaram pouco a pouco, quiçá cansadas de tanta água terem bebido no mar e vertido sobre casas, florestas e montanhas, enquanto nevoeiros isolados a parecerem-se fumos brancos emergiam nas arribas das montanhas viradas a sudeste, parecendo originárias de fogueiras na queima de ramos verdes de pinho ou silvas. Estes indicadores afirmavam com segurança que a tempestade daria lugar à bonança. Pastores, aves, animais domésticos e selvagens, conhecedores destes fenómenos da natureza sairiam à rua para expressarem as suas alegrias. As duas horas que faltavam para que o dia se vestisse de negro, seriam amplamente apreciados. Os galos nas capoeiras abririam as goelas para se regozijarem de contentamento, enquanto as galinhas aguardavam o momento de amor que o medo havia inibido a volúpia dos seus esposos. Nos rios, os peixes nadavam velozmente em todas as direcções e a felicidade era tanta que saltavam fora da água para apanhar insectos ou para exibirem as suas qualidades de dançarinos. O feixe de luz solar, que o astro emitia em posição de recolha para dormir do pesadelo de um dia triste, penetrava as águas até à profundidade, ao mesmo tempo que fazia da superfície do rio um espelho para a vegetação litoral ou para ele próprio, se remirar. Nos rebanhos, a alegria não seria menor e se as vacas se desabrigavam para regressarem ao pasto, emitindo aqui ou ali bramidos, os animais menores, que nunca o abandonaram, subiam ao alto das penedias para de lá lançarem montanha abaixo, balidos sinfonicamente emitidos de êxtase e que ao mesmo tempo deixavam o pastor em sossego, por se acharem vivos. As pequenas aves, mal parecendo acreditar no que viam, saíam à rua para comerem e gorjearem e até, os gatos se estendiam nos peitoris das janelas ou telhados mais baixos, para se aquecerem e espreguiçarem. O pesadelo da tempestade havia terminado para todos. Até o poderoso sol sentiria vilmente a maldade das carregadas nuvens que aliadas ao fiel vento espalhariam o pânico nos indefesos e animados seres. A lua e as estrelas iriam gozar uma noite de prazer e iluminar os noctívagos animais, seus companheiros da noite. O dia seguinte, seria mais um na vida de todos, mas menos tortuoso e mais sonhador. Agora, de angústia e pesadelo irão sofrer as nuvens, o trovão e os ventos para dar lugar ao sonho e largo e escarnecedor sorriso do sol, estrelas, lua, animais e floresta… O mal de uns, é sempre o bem de outros. É a vida…