Recomeço

Luiza dirigiu-se até a geladeira e prendeu o seu olhar no mini calendário de imã que estava afixado na porta. Apanhou a caneta que mantinha no armário e fez um “X” no número 15. Esse era o dia que completava exatamente seis meses que Antônio havia partido. Respirou fundo, deu meia volta e apanhou a chave do carro. Ainda não tinha se acostumado com a idéia de que era o seu próprio motorista agora, mas deixou escapar um sorriso ao sentir o orgulho que isto lhe proporcionava. Aprendera a dirigir em tempo recorde, dissera o instrutor da auto-escola. Ao que ela ouviu e pensou: “você tinha alguma dúvida de que eu conseguiria?”.

Sentou-se em frente ao volante, mas antes de dar partida no motor mirou-se no espelho retrovisor. Lançou um olhar de aprovação para si mesma ao contemplar o cabelo vermelho com mechas dois tons abaixo. O corte navalhado tinha lhe dado um ar arrojado disseram as amigas e ela concordava plenamente. Ajustou a tarraxa dos brincos de prata e lembrou por quanto tempo havia usado os brincos de ouro que foram um presente de Antônio e que nunca tinha ousado trocar.O segundo e terceiro furos vieram para compensar o tempo perdido.

O som de Glória Gaynor que saia dos alto-falantes do carro lhe causava certo frisson e o descontrole do acelerador que, teimava em elevar o ponteiro do velocímetro acima de 80 KM. Sentia vontade de voar! Era preciso atenção. Olhou para o pé direito e enxergou de soslaio o escorpião negro que pousava amistosamente sobre ele. Lembrou-se então, do dia em que havia mencionado a Antônio o desejo de tatuar a figura que representava o seu signo do zodíaco, com qual ela tanto se identificava. A gargalhada que ele havia soltado ecoava até hoje em seus ouvidos. “Ridícula”, ele a havia denominado, sem tempo de ver a lágrima que lhe escorria pelo rosto. Podia jurar que o escorpião sorria para ela agora, retribuiu o sorriso.

Parou em frente à doceria. Tinha vindo buscar a encomenda: torta de nozes, trufas e champanhe, para o seu aniversário. Deteve-se em frente ao vidro da vitrine e viu-se refletida.Vestida em um jeans quase desbotado, uma bata indiana que lhe cobria o quadril alongando a silhueta e rasteira dourada que combinava com a bolsa. Timidamente admitiu, sem falsa modéstia, que se sentia especialmente bela naquele dia. Retirou a encomenda e voltou para casa.

Assim que todos os convidados se fizeram presentes, pousou as velas sobre o merengue branco do bolo. Por um momento pensou se não deveria inverter os números feitos de cera. Colocar o 3 na frente do 6, pois era assim que se sentia, com 36 anos. Balançou a cabeça, contrariando o pensamento, e ajeitou as velas da maneira como elas deveriam estar: o 6 na frente do 3. Estava completando 63 anos, e isto era o que menos importava naquele momento. Passara boa parte da sua vida tentando provar para si mesma que era velha e deveria agir como tal. Agora sabia que, independente dos algarismos que a rotulavam, se sentia jovem e queria agir como tal. Quando o fogo tomou conta do pavio e se espalhou em forma de mini estrelas, ela soprou, sem saber o que desejar. Seu único e velho anseio já havia se realizado: ser ela mesma.

No último instante fez um pedido: “Antônio, descanse em paz”. Rá-Tim-bum! Luiza! Luiza!

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 21/01/2009
Reeditado em 21/01/2009
Código do texto: T1396520