Morte iminente

Prólogo:

Texto escrito em 31 de dezembro de 2005, após visitar a esposa

de um grande amigo e companheiro de caserna, em estado terminal, na UTI da Clínica Santa Clara, sito em Campina Grande-PB.

"Como a mirra, que só lança perfumes quando a deitam no fogo,

a nossa alma só tem aroma quando a angústia a queima". (Eugênio de Castro, Obras Poéticas, V, p. 47).

Contemplei-a da ante-sala da UTI, através da fresta da porta que entreabri silente e meu propósito de paz se acentuou. Seu sofrimento evolou-se como um aroma tétrico de missa passada.

Do quarto frio aspergia um cheiro místico de clorofórmio ou substância líquida, incolor, oleaginosa e aromática, que tem a propriedade de causar a anestesia ou a insensibilidade física.

A seriedade dos transeuntes (visitantes) e sisudez dos médicos e demais profissionais da clínica, com o incenso que transformava a ebúrnea palidez doentia do ambiente em tristeza crescente e malevolente, causavam-me náuseas.

Não sou bandolinista, tampouco preciso de um piano para sentir a harmonia do reino encantado que se avizinha na representação do desencarne inexorável, paz sublimada pela fria morte iminente.

Tendo bons ouvidos, sensibilidade poética, amor aos seres vivos que representam a natureza; posso ouvir as canções que me renegam, enxergar o sol que há muito se pôs, expulso pelo esplendor da Lua com seus raios reluzentes ou pelos refrões sulfurosos dos que agonizam na Terra em busca de um lenitivo, como um augúrio fatídico, tal qual sutil anoitecer da morte implacável e indiferente.

Como solenizar o espetáculo de uma festa que se finda? A vida se esvai, brada mais forte o sofrimento causado pela ausência dos gemidos e na perda da felicidade branda, alcançada pelo acme do gozo efêmero, apenas imaginado, o choro inaudível se malogra entre ruídos estranhos da carne, nervos e ossos que se rompem, entre lençóis esmaecidos pela neblina que se transmuda, na formosura do amanhecer do desencarne esperado.

O sepulcral grito inaudível, tal qual a delícia do absurdo, a eloqüência da contradição, a voluptuosidade do nada, perece entre as dores lancinantes do moribundo débil, ligado a aparelhos elétricos, quase sem vida, vegetando, esquecido, dormente, perdendo a olhos vistos, progressivamente, a sensibilidade.

Desfalecido, alvo e esquálido, o corpo exangue, com olhar sereno, esconso, súplice, arqueja ante o verdugo que lhe impinge atroz suplicio entre risos zombeteiros, presunção descabida, com assaz morbidez, prolatando a decisão inconteste, lançando-o na trilha estreita, escura, tortuosa, errática do medo da desventura, ceifando-lhe os lauréis da glória a duras penas alcançada.

Dos meus olhos surgiram tépidas, cariciosas, insulsas lágrimas. Essa aquosa exteriorização de dor incontida silenciou-me e nesse pranto mudo, inconsolável, antevi-me no lugar da esquálida figura que parecia saber seu destino certo.

Em cima de um armário cinzento, de cócoras, o espectro mordaz, que usava uma clâmide reluzente, escarlate, com variações de um amarelo-ouro estonteante, brandia sua espada de fogo e franzia a testa arqueando as sobrancelhas anormalmente grossas. Olhava-me nos olhos como a dizer num gesto respeitável, vigoroso, tonitruante:

"Não me temam. Respeitem-me! Sou o destino inconteste de todos, morte iminente que se tranasmuda em paz para os que acreditam nas benevolências que suscitam a prática das virtudes teologais".

Senti frio. As palavras eram dirigidas a todos, mas parecia que apenas eu ouvia ou percebia o tétrico aviso. Nesse momento ouvi gemidos plangentes. Meus lábios trêmulos balbuciaram uma prece soluçante:

"Para os erros o justo perdão. Para os fracassos uma merecida nova chance. Para os amores irrealizados, talvez por não terem sido possíveis, que se dê o devido tempo para uma venturosa, breve e necessária reencarnação".